A evolução de Alcméon e Empédocles ao genoma
Nasce com a filosofia grega e sua busca por elucidar a constituição da natureza, livre das bases sobrenaturais, a inquietude com a explicação da saúde e da doença.
Alcméon de Crotona (535 a.C.) foi o primeiro filósofo a assinalar a saúde como um equilíbrio no corpo humano de atributos opostos - como o frio e o quente, o aquoso e o seco, o doce e o amargo - e a caracterizar a doença como o predomínio de uma delas, escudando-se para isso na ideia de Pitágoras (560-480 a.C.) sobre uma harmonia assentada em proporções numéricas precisas.
Estendendo as teorias de outros filósofos sobre a relevância da água ou do fogo como elementos de alicerce na ordenação da matéria, Empédocles (492-432 a.C.) demarcou os quatro elementos: terra, água, ar e fogo, como essenciais à criação de todas as coisas, que alternavam entre si na proporção em que se mesclava cada um desses elementos, criando substâncias distintas, tais como os ossos e as rochas. Esses elementos e todo o processo do real eram determinados pelas forças universais contrárias do Amor (philia, em grego) - força de atração e união - e do Ódio (neikos, em grego) - força de dissolução - pelos quais se regia, ciclicamente, o Cosmos. A doença era, portanto, provocada pelo desequilíbrio desses elementos na constituição do corpo humano. A reflexão de Empédocles recaiu também sobre a existência nos organismos dos humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Em boas proporções levariam a pessoa à ostentação de boa saúde, mas, em desequilíbrio, a condenariam à enfermidade.
Hipócrates, a quem se atribuem cerca de sessenta tratados - o Corpus Hipocraticum - em sua maioria sobre matérias médicas, conservou essa visão naturalista. No texto hipocrático, a natureza do homem, se encontra na associação entre os quatro humores e as qualidades primárias, enfatizando a experimentação e os fatores causais. Essa teoria chegou a ser a base da medicina ocidental por mais ou menos 2000 anos, graças ao médico Galeno, da Ásia Menor, que viveu no século II d.C, e, inspirado pelas ideias de Platão e de Aristóteles, concebia o corpo humano administrado por três órgãos: o fígado, o coração e o cérebro, sob a suposição de que o organismo fosse máquina perfeita. Embora sua investigação ocorresse através de dissecações humanas e vivisecções de animais, conservou a teoria dos quatro humores. Segundo Galeno, a saúde consistia num balanceamento apropriado dos quatro constituintes básicos do corpo humano e ressaltava a importância da experimentação e da observação, posturas que lhe deram reconhecida autoridade. Suas crenças e tributos entusiasmaram a medicina dos clérigos medievais e sua metodologia de investigação foi resgatada após séculos por Vesálio e Servet, e, faustosamente, por William Harvey, que, durante o século XVII, ao descobrir a circulação do sangue, descortinou ao mundo a medicina científica que culminou durante o século XIX com os trabalhos de Pasteur e a sua teoria microbiana.
Subsistiu até finais do século XIX o esquema humoral do mundo antigo integrado ao marco teórico de Galeno. Depois da segunda metade desse século surgiu, paralelamente, uma nova tradição de investigação científica - o reducionismo metodológico - impulsionada por médicos alemães e que confirmou serem vírus e microorganismos os causadores de muitas enfermidades. O novel conhecimento levou a outro quadro explicativo e a diversos métodos de cura.
No século XX, a genética se afirma como ciência autônoma. Uma série de fatos interessantes e dignos de investigação revelam-nos o alcance das imensas perturbações culturais, econômicas, políticas, sociais e jurídicas que escoltam os rápidos avanços das ciências da vida, sendo necessário, para melhor entendimento, citar o nascimento da revolução genética, que tem início na organização da biologia molecular.[1]
Em 1900, redescobrem-se os princípios que regem a transmissão dos caracteres biológicos hereditários que Mendel colocara em relevo.
Em 1920, a palavra genoma foi criada por Winkler, onze anos após o termo gen vir a lume pelo engenho de Johanssen, para indicar o total da soma de genes de um organismo. Durante muitos anos sua utilidade foi desconsiderada pelos geneticistas e citogeneticistas, pois aos primeiros importavam os genes e aos segundos os cromossomas. Isso não ocorre nos dias atuais, quando o incremento de informações acarretado pela biologia molecular conduz a um maior emprego da palavra genoma (BERNARDI, 1993, p. 255-256).
Em 1944, Ostwald Avery, Mc Lead e Mc Carty derrubam o pensamento, até então dominante, de que os portadores do material genético eram as proteínas cromossômicas, revelando que ao DNA (ácido desoxirribonucleico) cabia a função de guardar a herança genética dos seres vivos.
Descobertas apreciáveis ainda marcam os progressos, tais a elucidação, em 1953, da estrutura em hélice dupla do ADN, por Francis Crick e James Watson; o esclarecimento, nos anos 60, da função do ARN mensageiro, por François Gross, François Jacob e Jacques Monod; o surgimento, na década de 70, das técnicas da engenharia genética.
O triunfo dessa metodologia de investigação, que inumou o esquema dos quatro humores, foi nascente à pretensão de criar um novo esquema médico, de modo singular assentado também em quatro elementos, mais especificadamente, em quatro bases nucleotídicas: adenina, citocina, guanina e timina, formadoras do material da herança genética (ADN). Dessa forma, dentro dos cromossomos, cadeias de açúcares e fosfatos ligam-se por pares de bases químicas, vulgarmente designadas pela sua inicial: A, C, G e T. Essas bases unem-se formando degraus de uma escada de corda, enrolada em forma de dupla hélice. O alfabeto de quatro letras agrupadas em mais de três milhões de pares, em combinações diversas denominadas genes, funciona como o código usado pela natureza para sintetizar proteínas, e, assim, criar a vida.
Essas transformações constituem um marco na história científica e na história da humanidade, ao permitir que o ser humano, pela primeira vez, imiscua-se no processo da hereditariedade, metamorfoseando a estrutura genética da sua própria espécie, ao propagar as novas atividades de cartografia física e genética (SCHULER, p. 540) e expor sua capacidade para criar seres absolutamente idênticos, através da clonagem humana. É de essencial valor esse final de milênio, quando o homem, no fraseado de Oswaldo Spengler: “arrebatou à Natureza o privilégio da criação.”[2]
A paulatina construção dessa extraordinária visão suporta-se nos distintos projetos de inquirição científica, dentre esses, o Projeto Genoma Humano (PGH).
[1] “A biologia molecular é entendida como a verdadeira frente avançada do horizonte da biologia, isto é, a última modalidade de descrição biológica, o nível pertinente (após o qual os outros níveis seriam não especificamente biológicos: orbitais, moleculares, forças de ligação, e assim até chegar às forças nucleares ou aos níveis quânticos dos elétrons).” (PRODI, 1993, p. 98). Sobre o nascimento da biologia molecular ver: COSTA, 1987; BUICAN, [1987], 118 p.
[2] “A vontade livre é em si nada menos que um ato de rebeldia. O homem criador se libertou dos laços da Natureza e com cada criação nova se afasta cada vez mais dela, torna-se cada vez mais seu inimigo. Isso é História Universal, a história de uma dimensão fatal que se ergue, incoercível, sempre crescente, entre o mundo do homem e o universo - a história de um rebelde que cresce para erguer a mão contra a própria mãe.” (SPENGLER, 1941, p. 69).