A tópica como método de interpretação constitucional aplicável aos direitos fundamentais
Capítulo de Monografia: MOTA, Sílvia Maria Leite. Direito à saúde e princípios constitucionais: aplicação dos princípios da proporcionalidade e dignidade da pessoa aos casos relacionados à saúde humana". Trabalho Monográfico apresentado ao Curso de Pós-Graduação em nível de Doutorado, da Universidade Gama Filho, como exigência da disciplina Teoria Geral do Direito. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Margarida Maria Lacombe Camargo.
Cabe neste momento discorrer sucintamente sobre como a interpretação constitucional tópica pode e deve ser empregada com correção quando o objeto em análise são os direitos e as garantias fundamentais.
Origem e definição
A tópica foi nominada por Aristóteles. O texto da Tópica é uma das seis obras aristotélicas incluídas no Organon. Ocupa-se da antiga arte da disputa, domínio dos retóricos e sofistas: “Nosso trabalho”, diz Aristóteles: “[...] persegue a tarefa de se encontrar um método com o qual, partindo-se de proposições conforme as opiniões (ex endoxon), seja possível formar raciocínios (dynesómetha sylloguisesthai) sobre todos os problemas que se possam colocar (peri pantos toy protesthentos problematos) e evitar as contradições, quando devemos sustentar nós mesmos um discurso. (Top. I.1.1)” Isso quer dizer, que, colocado um problema qualquer, trata-se de raciocinar a partir de opiniões que parecem adequadas, para atacar ou para defender.
A tópica de Cícero teve maior influência histórica que a de Aristóteles e foi por aquele definida como: “[...] um processo especial de tratamento de problemas”[1], que se caracteriza pelo emprego de certos pontos de vista, questões e argumentos gerais, considerados pertinentes – os tópicos, precisamente.
O método tópico foi desenvolvido na Alemanha por Josef Esser e Theodor Viehweg, sendo esse o primeiro trabalho acerca do tema, sob o título Topik und Rechtsphilosophie, publicado por volta de 1953.[2]
A tópica pretende fornecer indicações de como se comportar em determinadas situações. É, portanto, nas palavras de Viehweg, uma “técnica do pensamento problemático”[3], mais precisamente: “[...] uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica. Ela se desdobra numa contextura cultural que se distingue claramente nas menores particularidades de outra de tipo sistemático dedutivo.”[4]
Tercio Sampaio Ferraz Jr., no prefácio à obra de Viehweg, diz tratar-se a tópica de um estilo e não propriamente um método; não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles.” Assim, continua o autor, num campo teórico como o jurídico, “pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa.”[5]
Elementos da tópica
Segue análise de cada um dos três elementos característicos da tópica, a saber: o problema, os topoi e a legitimação das premissas.
O problema
O primeiro elemento caracterizador da tópica é o problema, ponto de partida do pensar tópico. Trata-se de um problema concreto, uma situação da vida real. O termo pode ser substituído por aporia, que significa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível; designa a falta de um caminho, a situação problemática que não é possível eliminar.
Viehweg chama de problema toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há de levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução.[6]
A aporia fundamental do direito é a aporia da justiça. O que é o justo aqui e agora? Eis um problema que o direito busca permanentemente resolver, e que por isso Viehweg o caracteriza como tópico.
Para Juan Antonio Garcia Amado, o que caracteriza um problema é a existência de distintas alternativas para o seu tratamento, de diferentes respostas ou vias de atuação possíveis. Porém, busca-se uma solução ou resposta, o que leva à necessidade de uma decisão, de uma eleição entre alternativas.[7]
O problema direciona tudo. A partir da sua formulação busca-se solução em um sistema A; caso o sistema A não ofereça a solução adequada passa-se ao sistema B, e, assim por diante, até que se encontre a solução adequada. Não sendo encontrada no sistema uma resposta para o que se denominou de problema, conclui-se que seja um falso problema.
Os topoi
O segundo elemento caracterizador do pensar problemático são os topoi, que devem ser entendidos de um modo funcional: "[...] como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento”.[8] Servem a uma discussão de problemas.
Conforme os topoi sejam escolhidos arbitrariamente ou estejam previamente dispostos sob a forma de catálogos, pode-se classificar a técnica do pensamento problemático em tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau. Dessa forma, os topoi são pontos de vista que servem a uma discussão do problema, instrumentos auxiliares, empregáveis em diversas instâncias, com validade geral, lançados na ponderação de prós e contras das opiniões e podem inferir o que é verdadeiro.[9]
Não é a interpretação tópica limitada aos empregos dos a priori vinculados a uma interpretação por analogia, que, em muito se assemelha ao método sistemático. Nessa seara, a lição de Peréz Luño: “Respecto a los principios de la interpretación constitucional debe advertirse que no reducem a los modo o topoi clásicos de la argumentación analógica, ad absurdum, a contrario, a pari, a fortiori, a maiore ad minus, a minore as maius [...], sino que se presentan como criterios relevantes para orientar y dirigir el proceso de selección de los punto de vista que permitem la solución del problema. Tales princípios poseen una significación autónoma para la interpretación constitucional y, entre ellos, se alude a los de: unidad, concordância práctica, efectividad, funcionalidad, fuerza integradora y fuerza normativa de la Constitución; así como el principio in dubio pro libertate en ordem a la interpretación de los derechos fundamentales.”[10]
Os topoi adquirem sentido em razão do problema, ao qual se vinculam diretamente. Toda proposição ou conceito que sirva a uma discussão de problemas e que leve a busca de uma solução adequada para o caso concreto pode ser considerado como topoi. Em se tratando do Direito Constitucional podem ser caracterizados como topoi: os métodos de interpretação constitucional, as normas constitucionais, os argumentos da doutrina juspublicista e as decisões do judiciário, entre outros.
Com o problema em evidência, as normas jurídicas passam a segundo plano e adquirem a natureza de topoi. Esclarece Paulo Bonavides: “A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica.”[11]
A validação das premissas pela aceitação do interlocutor
A terceira característica da tópica é a validação das premissas pela aceitação do interlocutor. Repete-se ser a tópica uma técnica de pensar por problemas. Posto um problema, o intérprete busca auxílio nos topoi, que servem para afirmar ou contrapor um outro argumento. A partir do momento em que o interlocutor aceita as argumentações contrárias, vão-se formando as premissas em busca de uma solução razoavelmente justa. Dessa forma, as premissas se legitimam pela aceitação do interlocutor. Em outras palavras, firmam-se como premissas legítimas os pontos de vista aceitos pelas partes, depois de postos em discussão.
Juristas e Tópica Jurídica
Joaquim José Gomes Canotilho, refere-se aos topoi, ao dizer que os aplicadores do direito, de um modo geral, servem-se desses para dar o desfecho à situação concreta que é posta.[12] O fim da interpretação acaba por desprestigiar o sistema constitucional em detrimento de primar pelo amplo processo de argumentação, fruto, obviamente, da sua natureza fragmentária. No mesmo diapasão o pensamento de Inocêncio Mártires Coelho: “[...] o caráter prático da interpretação constitucional, assim como a estrutura normativo–material aberta, fragmentária ou indeterminada da Constituição, impõem que se dê preferência à discussão dos problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o que afinal transformaria a interpretação constitucional num processo aberto de argumentação.”[13]
Por essa deficiência quanto à visão de sistema e pelo excessivo casuísmo, a tópica é refutada pela literatura jurídica, sendo proveitosa a afirmação de Canotilho de que a concretização constitucional a partir dos topoi merece sérias reticências. Além de conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas, desta para os problemas. A interpretação é uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema.[14]
No mesmo sentido, o comentário de Eros Roberto Grau: “Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela – da norma até a Constituição. Uma norma jurídica isolada, destacada, desprendida do sistema jurídico, não expressa significado normativo nenhum.”[15]
A interpretação específica para os direitos fundamentais, e, consequentemente, para o Direito Fundamental à Saúde, aproxima-se da interpretação tópica, pois que se trata de um problema particularizado, que, em tese, poderia ser resolvido particularmente, muito embora tal procedimento venha a colidir com outros princípios aplicados à interpretação constitucional, como o Princípio da Unidade e o Princípio da Sistematicidade.
Necessário ter em mente que os direitos e garantias fundamentais correspondem a uma categoria jurídica especialíssima, particular e pormenorizada. Sua especificidade, seu caráter dirigente[16] e a sua peculiaridade de implementação e proteção legitimam o emprego da tópica, que acabaria por não interpretar a Constituição como um todo, mas, somente em alguns aspectos, por meio de alguns dispositivos r de forma isolada, como ocorre no caso de inadimplemento decorrente da alienação fiduciária em garantia e a eventual sujeição à prisão civil, em que mister se faz interpretar detidamente o inciso LXVII, do artigo 5º da atual Carta Magna brasileira.
O centro da discussão suscitada por Viehweg e os seus seguidores situa o problema de qual será a relação entre a tópica jurídica e o princípio de legalidade na atuação do juiz. Trata-se de verificar que lugar ocupa o Direito Positivo no contexto dos tópicos que guiam a obtenção de decisões jurídicas, tópicos que possuem natureza eminentemente heterogênea.
A polêmica é acirrada. Sustentam alguns que a lei é um tópico mais entre os outros, sem nenhum tipo de estatuto superior; outros rechaçam a tópica jurídica precisamente, porque, diz-se que não conhece o caráter vinculante de que a norma legal goza em todo processo de obtenção das decisões jurídicas, passando por aqueles que tratam de salvar a compatibilidade entre a doutrina metodológica da tópica e o respeito ao caráter preceptivo do Direito Positivo.
Viehweg faz uma recuperação histórica da noção de prudência como especial forma de priorizar o processo interpretativo diante do rigorismo legalista, que, na sua opinião, pode perturbar sensivelmente o rigor dos sistemas dedutivos, semelhantemente ao sistema kelseniano. Para alcançar os seus resultados, o autor desenvolve ou retoma a discussão sobre os métodos científicos, caracterizando o antigo como retórico (tópico) e o moderno como crítico.
Viehweg delimita sua doutrina mediante o enfrentamento com uma versão extrema da Jurisprudência de conceitos e a crítica divide-se. Alguns admirando-o, porque tal tese nunca fora defendida por ninguém com tanta radicalidade e simplismo. Outros, por não assumirem posição clara, mas, antes pelo contrário, demonstrarem o desejo patente de utilizar essa componente da tópica para a sua análise da Ciência do Direito. Segundo Claus-Wilhelm Canaris, esse é “[...] um lapso pesado e prejudicou gravemente a discussão em torno da sua tese”.[17]
Realmente, os débeis posicionamentos de Viehweg pouco contribuem para fortalecer a sua mais interessante formulação sobre a tópica jurídica na solução de problemas, modernizando as formulações críticas sobre o sistema de dedução axiomática.
*** As referências bibliográficas deste texto serão solicitadas à Professora Sílvia M L Mota.