Textos

Sociedade e Direito
Professora Sílvia M L Mota
- Trecho de Apostila -
 
O vocábulo "sociedade" planta as suas origens no latim socius, que significa companhia. Sendo assim, uma sociedade somente se edifica a partir da relação que os indivíduos estabelecem uns com os outros.

Nunca o ser humano descobrirá, na realidade, porque é um animal social. Teria sido necessário o desenrolar do fio de Ariadne, a demarcar extremos entre passado e presente, para que se pudesse encontrar a origem científica do fenômeno da sociabilidade humana. Mas, a verdade histórica, neste pormenor, se perdeu no indecifrável labirinto do tempo. Alguns autores procuram justificar suas teorias a respeito do fenômeno da sociabilidade humana no caráter biológico; outros, na consciência humana, outros ainda na inteligência ou num conjunto de fatores. Especulativos ou científicos colocam-se estes parâmetros a serviço da reflexão.

Eis o pensamento simplificado de Émile Durkheim (2008, p. 31-32): "Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os fiz, mas os recebi pela educação [...] [Tais fatos] consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que soam dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele... Esses fatos constituem, portanto, uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais." Para o autor, a sociedade tem as suas bases na necessidade de cooperação criada pela necessidade que os seres humanos têm em produzir bens para a satisfação dos seus desejos. Tal produção, possível somente através da cooperação, cria um sistema no qual o indivíduo tem o seu papel estabelecido. Como consequência, dá-se a necessidade da divisão social do trabalho, que, aliada a um sistema regularizador para controlar as funções individuais, torna possível o bom funcionamento da estrutura social. Entretanto, uma vez que a sociedade se baseia em um sistema com funções e normas institucionalizadas, esse sistema pode falhar, caso um dos seus segmentos não coopere com os outros.

Sabe-se que desde o mais remoto, o mais longínquo passado, por mais que um pesquisador possa se distanciar no tempo, sempre encontrará um mínimo de regramento da vida em sociedade; e, nele latente, o fenômeno jurídico. Detectará, aqui e acolá, direitos em conflito. Isso ocorre, porque onde houver homens surgirão interesses; onde houver interesses, existirão conflitos; e, onde houver conflitos deverá desenvolver-se sempre uma maneira de compô-los. Existirão sempre prêmios e castigos aos indivíduos que se comportarem bem ou mal.

No início da civilização, as normas de conduta apresentavam-se sob um aspecto amorfo, onde se mesclavam, inseparavelmente, normas religiosas e morais. Aqueles que habitaram a face da Terra temiam o barulho do trovão, o furor das tempestades, como se fossem avisos furiosos dos deuses que representavam, ameaçando-os pelas atitudes contrárias ao que se considerava normal em relação aos outros indivíduos. Essas formas incipientes de vida em sociedade insinuavam um esboço de ordem jurídica, vivida e exercida pelo homem através dos tempos. Com a evolução e a maturidade do pensamento humano aqueles regramentos estruturaram-se alicerçados em valores próprios, livres da religião ou dos costumes, e, em decorrência, a humanidade sobrelevou a autonomia do Direito. Segundo Miguel Reale (2002, p. 3), essa tomada de consciência do Direito assinala um momento crucial e decisivo na história da espécie humana, podendo-se dizer que “a conscientização do Direito é a semente da Ciência do Direito”.


O convívio social humano exige, de forma inescusável, a vigência de normas às quais devem os indivíduos encaixar as suas condutas, pois, ao contrário, imperaria o caos e a vida em comum seria impossível. Pode-se afirmar, portanto, que o Direito nasce dos fatos sociais, das relações travadas entre os seres humanos. Está onde se colocam as pessoas, onde existe sociedade. Com lei ou sem lei, os fatos acabam por se impor ao Direito, cabendo a este adaptar-se àqueles. Essa íntima relação entre Direito e Sociedade faz tarefa complexa definir o Direito, tendo em vista os diversos ângulos de análise, o que conduz à confusão entre a ideia, o fundamento e o fim que se lhe atribuem. Por viver em sociedade, precisa o indivíduo de regras, por serem estas necessárias à sobrevivência daquela. O direito está no cotidiano, sem que as pessoas dele se apercebam, a não ser quando um fato ocorre. Mas, como defini-lo?

A palavra direito provém do latim directu (qualidade do que está conforme a reta, que não tem curvatura), que suplantou a expressão jus, do latim clássico, por ser mais expressiva. Ao olhar do homem comum é lei e ordem. Noção correntia sagrada pelo uso explicita o Direito como um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças à instauração de limites à conduta dos indivíduos. Assim sendo, assinala Miguel Reale (2002, p. 1), quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o faz, age torto.
 
- Direito é uma ordem e: “Uma ‘ordem’ é um sistema de normas” [...] “As normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana.” (KELSEN, 2000, p. 33)

- Direito é “[...] não apenas um querer e dever, mas sim uma força real e atuante na vida do povo. Assim, apesar de toda a capacidade de inovar, a lei somente poderá apor seu selo às regras que o costume desenvolveu [...]”  (RADBRUCH, 1999, p. 2)

- Direito é “[...] o conjunto das regras positivas (jus in civitate positum) que regem, dentro da sociedade organizada, a questão do meu e do seu.” (FRANÇA, 1999, p. 9)

- Direito é “[...] o conjunto de normas de conduta humana obrigatórias e conformes à justiça.” (BORDA, 1976, p. 8)
Outros significados podem ser dados ao vocábulo Direito.
 
Para Limongi França (1999, p. 5-6), deve ser entendido sob quatro aspectos:
 
- o Direito como o que é justo: relaciona o Direito ao conceito de ideal de Justiça. O Direito deve ser justo. Os jurisconsultos romanos já ensinavam que o Direito provém da Justiça (jus est a justitia appellatum). A criação do Direito não tem e não pode ter outro objetivo senão a realização da Justiça. Exemplos: 1. O salário é direito do trabalhador – a palavra direito significa aquilo que é devido por justiça; 2. Não é direito condenar um anormal - o que significa que fazê-lo não é conforme à justiça);

- como regra de Direito: é a ordem social obrigatória estabelecida para regular a questão do que é de cada um => direito objetivo = norma agendi;

- como poder de Direito: decorrente do direito objetivo existe um poder de exigir determinado comportamento de outrem => é o direito subjetivo, constituído do poder de direito => o conjunto de faculdades que as pessoas têm, conferido pela regra de direito = facultas agendi;

- como sanção de Direito: onde se discute o fato de existir ou não direito sem sanção, isto é, sem a força do poder público ou dos grupos sociais que o torna obrigatório. Para o autor, é da natureza do direito ter sanção, “sem o que o direito seria inatuante”.

Paulo Dourado Gusmão (1996, p. 55) ensina que a palavra direito tem três sentidos:

 
- regra de conduta obrigatória => direito objetivo;

- sistema de conhecimentos jurídicos => ciência do direito;

- faculdade ou poderes que tem ou pode ter uma pessoa, ou seja, o que pode uma pessoa exigir de outra => direito subjetivo.

Ao analisar os diversos sentidos da palavra Direito, Miguel Reale (2002, p. 61-68) demonstra que correspondem a três aspectos básicos necessários para a sua compreensão. Entendidos estes três conceitos, desvenda-se a verdadeira concepção tridimensional da experiência jurídica, ou seja, um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (Direito como fato) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça).


A Tridimensionalidade do Direito, objeto de estudo nas últimas quatro décadas, culmina na teoria abraçada pelo jurista, que lhe empresta nova feição ao demonstrar que onde exista um fenômeno jurídico, há, sempre, obrigatoriamente:
 
- um fato subjacente (social ou natural);

- um valor, que confere determinada significação a esse fato; e, finalmente,

- uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor.
Fato, valor e norma não existem para o Direito, separados um do outro, mas coexistem numa unidade concreta, resultando desta integração dinâmica o Direito.

Seguem alguns exemplos:

“Matar alguém” – pena de 3 a 12 anos (norma) – dispõe sobre um fato de matar uma pessoa (fato social) e visa assegurar a vida (bem maior do homem - valor)
 
Os pais devem prestar assistência a seus filhos (norma) – dispõe sobre a proteção aos menores (fato social) e visa assegurar a educação e o bem estar do menor, com vistas ao progresso social (valor).
 
“Aquele que [...] causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (norma) – dispõe sobre a proteção dos bens alheios (fato econômico) e visa assegurar esse patrimônio (valor).

Referências

BORDA, Guillermo A. Manual de derecho civil: parte general. 8. ed. actual. Buenos Aires: Perrot, 1976. 598 p.


DURKHEIM, Émile (1858-1917). As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 31-32.

FRANÇA, R. Limongi. Instituições de direito civil: todo o direito civil num só volume. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999.

GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao estudo do Direito. 19. ed. rev. Com algumas alterações. Rio de Janeiro: Forense, 1996.


KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. 4. tir. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Ensino Superior). Tradução de: Reine Rechtslehre.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Tradução Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Tradução de: Einführung in die rechtswissenschaft. 232 p.


REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 07/03/2021
Alterado em 07/03/2021
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