Legítima defesa: tópicos relevantes
Previsão legislativa
O artigo 25 do Código Penal Brasileiro conceitua o instituto da legítima defesa da seguinte forma: “[...] entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Da leitura desse dispositivo, pode-se inferir que traz a tona dois dados: um referente à ação do agressor (situação de legítima defesa) e outro à ação do agredido (situação de legítima defesa).
Fundamento pelo qual, na legítima defesa, diferentemente do que ocorre com o estado de necessidade, não é exigível o balanceamento entre os bens do agressor e agredido.
O fundamento está na "injustiça" da agressão.
No estado de necessidade o conflito envolve interesses lícitos, pelo que a ponderação se impõe. Sua caracterização depende da proteção de bem de valia igual ou superior ao lesado, além, evidentemente, dos demais requisitos legais (art. 24 do CP).
Na legítima defesa, em face da agressão injusta, só o ofendido é objeto de proteção penal, pelo que poderá ir tão longe quanto necessário seja para cessar a agressão, isto é, mesmo à custa de bem mais valioso do que o protegido.
No estado de necessidade há conflito de "interesses lícitos", enquanto a tônica da legítima defesa é a de envolver uma bipolaridade, fática e jurídica, entre agressão e reação, injusto e justo, interesses distintos, um ilícito e outro lícito. A elasticidade é bem maior, não havendo ponderação de bens.
O Oficial de Justiça, por erro datilográfico no mandado quanto ao número do prédio residencial de Carlos, pretende efetuar a prisão de Emerson, acreditando que este é aquele. Emerson resiste e emprega violência física contra o oficial, provocando-lhe lesões corporais graves. Uma vez criminalmente processado, Emerson poderia alegar a legítima defesa real?
Sim. O mandado apresentava erro de destinatário, portanto, a ordem não se dirigia a Emerson, não tendo o mesmo o dever jurídico de suportá-la. Injusta é a agressão não permitida pela ordem jurídica, em razão do que o agredido não está juridicamente obrigado a suportá-la. O ato do oficial não lhe era justo, permitido, autorizado, e a reação de Emerson foi em legítima defesa. Quanto ao oficial, encaixa-se no putativo estrito cumprimento do dever legal.
Na legítima defesa, a agressão injusta precisa ser uma violência física?
Não. Basta que coloque o bem jurídico sob ameaça de lesão. Por exemplo, o furto mediante destreza, a “punga”. Não há violência física, mas, nem por isso, o ofendido está impedido em proteger o bem patrimonial mediante legítima defesa. Sob o ângulo jurídico, agressão é atentado, mesmo sem o cometimento de violência.
O excesso doloso ou culposo, exclui a legítima defesa?
Não. Excesso significa uso de meio desnecessário ou uso imoderado do meio necessário. Estando na reação, pressupõe uma situação inicial de legítima defesa e os atos até então praticados permanecem justificados pela excludente, devendo o defendente responder apenas pelo que vier a causar na vigência do excesso. Se o excesso excluísse a legítima defesa, o defendente responderia por todos os atos da reação.
O excesso doloso e culposo vem tipificado no artigo 23, parágrafo único, do Código Penal:
Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
Há legítima defesa contra animais?
Não. O ataque de animal é revidável pelo estado de necessidade e não pela legítima defesa. Alguns autores sustentam que será caso de legítima defesa quando o animal tiver sido atiçado pelo homem (Damásio, Mirabete).
Nesse mesmo refrão, esclarece Capez (2008, p. 282), que o ataque de animal não configura, e, portanto, não autoriza a legitima defesa. No caso, se a pessoa se defende do animal, está em estado de necessidade. Convém notar, contudo, que, se uma pessoa açula um animal para que ele avance em outra, nesse caso existe agressão autorizadora da legítima defesa, pois o irracional está sendo utilizado como instrumento do crime.
A legítima defesa pode coexistir com o estado de necessidade?
Sim. Coexistir significa existência simultânea, no mesmo episódio. Ainda que exista a possibilidade de coexistirem, várias são as diferenças entre o estado de necessidade e a legítima defesa. Alguns estudiosos, entre esses Bitencourt (2004, p. 323), consideram a legítima defesa como um caso especial de estado de necessidade: "[...] a legítima defesa é, em última instância, um caso especial de estado de necessidade, que recebe um tratamento legal específico". A legítima defesa pode coexistir com estado de necessidade, como no exemplo citado por Mirabete (2004), do agente que quebra uma estatueta (estado de necessidade) para defender-se de uma agressão (legítima defesa). Na mesma sintonia, expõe Damásio (2013, p. 397), “[...] a legítima defesa pode coexistir com o estado de necessidade. Ex.: A, para defender-se da agressão de B, lança mão de uma arma que se encontra na posse de C. Há legítima defesa contra B; estado de necessidade contra C.
A agressão injusta, para autorizar a legítima defesa, precisa configurar um tipo de delito ou de contravenção?
Não. Geralmente, o fato constitutivo da agressão corresponde a um tipo penal incriminador. Mas, a correspondência não é obrigatória.
Agressão injusta é a agressão antijurídica, contrária ao ordenamento como um todo, não necessariamente ao direito penal. Exemplo: furto de uso. Embora não se constitua em fato típico, pela ausência do elemento subjetivo “para si ou para outrem”, significa ofensa ao direito de posse, protegido pelo direito civil, havendo, assim, a possibilidade da defesa legítima.
Legítima defesa sucessiva é a repulsa contra o excesso, culposo ou doloso. Falso ou verdadeiro?
Verdadeiro. Diz-se sucessiva a legítima defesa em que as partes se sucedem nos polos da relação, pressupondo excesso.
“A”, ao defender-se de “B”, faz uso imoderado do meio necessário, atuando, pois, em excesso. Como o excesso significar ir além do devido, com a sua ocorrência desaparece a ação defensiva, e o ex-agredido passa a ser ofensor, permitindo, ao ex-agressor, que se transforma em ofendido, o exercício da excludente.
Há legítima defesa ou estado de necessidade no comportamento daquele que, para salvar a própria vida, arrebata, causando lesões corporais na enfermeira, o remédio que esta sonega “animus necandi”?
Há legítima defesa. A enfermeira, pelo contrato, obrigou-se a cuidar do paciente, no que se incluiria o fornecimento do medicamento (art. 13, § 2º, alínea “b”, do CP). Ao deixar de ministrar-lhe o medicamento, colocou seu bem vida sob ameaça de lesão, o que se constitui em agressão, e injusta, porque desautorizado o procedimento, ensejando, assim, a reação em legítima defesa.
O estado de necessidade pressupõe conflito de interesses lícitos e no caso, embora existente conflito, seria de interesse ilícito (da enfermeira) e lícito (do paciente). A justificativa aplicável a conflito entre interesse lícito e interesse ilícito é a da legítima defesa e não do estado de necessidade.
Como deve ser resolvida a questão da colisão entre o "direito de proteção do bem injustamente agredido" e o "dever de proteção da pessoa do agressor"?
Determinadas restrições ético-sociais impõem-se ao direito de legítima defesa nas agressões no âmbito das relações de garante.
Se as partes, ainda que por relação extra-matrimonial, assumem, pela vida em comum, os deveres de mútua saúde e assistência, a coincidência simultânea do direito de proteção e do dever de proteção tem que comportar forçosamente uma restrição imanente da legítima defesa.
Nessa linha de pensamento, o princípio da defesa do direito tem que se reduzir na medida da necessidade de proteção socialmente adequada nos casos em que o agredido está obrigado juridicamente (o que é inegável no caso em tela, ao menos sob o prisma penal, nem que seja por força do § 2º, art. 13, do Código), em qualquer caso, à proteção e consideração do agressor.
Se os cônjuges são responsáveis pela mútua saúde e assistência, a coincidência simultânea do direito de proteção e do dever de proteção tem que comportar forçosamente uma restrição imanente da legítima defesa.
Assim, se houver injusta agressão, partida de um dos garantes, a reação do outro, para ser legítima, é condicionada a atitude não-reagressiva, desde que não implique em vexame ou sério risco de lesão ao bem jurídico agredido.
Para fins de caracterização da legítima defesa de terceiro, é exigível a existência de relação de parentesco ou amizade entre o sujeito interveniente e o agredido?
Não. Observar o art. 5°, XXXIII da Constituição Federal 1988 e Código Penal, art. 25 referente ao direito de legitima defesa de terceiro, que independe de mandato ou relação pessoal. “Entende-se, em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Para fins de caracterização da legítima defesa de terceiro, não é exigível a existência de relação de parentesco ou amizade entre o sujeito interveniente e o agredido. A lei penal brasileira não faz qualquer tipo de exigência. A defesa de terceiro é exercitável seja ou não o beneficiário parente, amigo, conhecido, colega, etc. do defendente. O fundamento da legítima defesa de terceiro está na solidariedade manifestada pelo interveniente.
Para fins de configuração da agressão, basta que o comportamento represente objetivamente uma ameaça de lesão, pouco importando que não se ligue ao agressor pela voluntariedade?
Ao entendimento de forte corrente literário-juridica, se a agressão consiste na ameaça de lesão ao bem jurídico, não importa saber se o agressor não atua voluntariamente ou sem condições de formar consciência da injustiça. Eis o que nos ensina Jesus (2013, p. 428): "A injustiça da agressão deve ser analisada de forma objetiva, independentemente da consciência da ilicitude por parte do agressor, não precisando basear-se em intenção lesiva. É suficiente que o comportamento represente objetivamente uma ameaçadora lesão, pouco importando que não se ligue ao agressor pela voluntariedade "
A agressão injusta deve ser atual ou iminente?
A agressão, além de injusta, deve ser atual ou iminente. Agressão atual é a presente, a que está acontecendo.
Mirabete (2004, p. 183) ensina: “[...] não atua [...] em legítima defesa, aquele que pratica o fato típico após uma agressão finda, que já cessou. A reação deve ser imediata à agressão ou tentativa dela; a demora na reação não configura a discriminante. Quem, provocado pela vitima, se dirige a sua residência, apanha uma arma e volta para o acerto de contas não age licitamente.”
Há legítima defesa contra legítima defesa?
Não há legítimas defesas recíprocas.
Agressões recíprocas não tornam as condutas dos agressores atípicas, notadamente por inexistir no direito penal o instituto da compensação de culpas, isto é, a responsabilidade penal não contempla qualquer excludente de ilicitude que legitime pessoas a se agredirem mutuamente. Assim, quando dois agentes se agridem reciprocamente, ambas as condutas são antijurídicas e, portanto, passíveis de punição pelo direito penal. Pode ocorrer de um dos agressores estar acobertado pela legítima defesa, especificamente quando consegue demonstrar que sua conduta sobreveio a injusta agressão praticada por outro agente. O que precisa ficar claro é que, nesses casos, apenas um dos agressores estará acobertado pela excludente da legítima defesa, pois, assim como inexiste respaldo penal para as agressões mútuas, inexiste legítima defesa recíproca. Se existe dúvida sobre quem agiu em legítima defesa, ambos devem ser absolvidos com fundamento no in dubio pro reo, e não na juridicidade das agressões mútuas. Em suma, as agressões mútuas sempre serão consideradas típicas sob a ótica do direito penal, já que inexiste compensação de culpas e, até prova em contrário, presumem-se injustas. Contudo, quando uma agressão é precedida de outra agressão injusta, aquela é tida como justa e encontra-se encampada pela excludente da legítima defesa, desde que se tenha certeza da autoria, da natureza das agressões e da precedência de uma sobre a outra. Na dúvida sobre quem agiu em legítima defesa, prevalece a absolvição dos agressores (in dubio pro reo). (BRASIL, 2016).
Admite-se hipótese de legítimas defesas putativas recíprocas.
Há legítima defesa putativa, também chamada de legítima defesa imaginária, quando o indivíduo crê, erroneamente, que está sofrendo uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de terceiro, e repele tal agressão. Segundo Mirabete (2001, p. 188): “Não está excluída a antijuridicidade do fato porque inexiste um dos seus requisitos (agressão real, atual ou eminente), ocorrendo na hipótese uma excludente da culpabilidade nos termos do art. 20, & 1º. Exemplo é o do agente que, em rua mal iluminada, se depara com um inimigo que lhe aponta um objeto brilhante e, pensando estar na iminência de uma agressão, lesa o desafeto. Verificando-se que o inimigo não iria atingi-lo, não há legítima defesa real por não ter ocorrido a agressão que a justificaria, mas a excludente da culpabilidade por erro plenamente justificado pelas circunstâncias. Absolveu-se também o acusado, proprietário de um veículo, que, com o auxílio de outrem, reagiu violentamente contra a vítima que tentava abrir, por equivoco, seu veículo, induzindo o agente a supor que se tratava de furto. Mesmo nessas hipóteses, porém, é sempre indispensável àmoderação.”
Moderação na repulsa necessária
Encontrado o meio necessário para repelir a injusta agressão, o sujeito deve agir com moderação e não empregar o meio além do que é preciso para evitar a lesão do bem próprio ou de terceiro.
O atual Código Penal italiano, prevê no art. 52, para o exercício da legítima defesa, a necessita di difendere e sempre che la difesa sai proporzionata all’offesa. Basicamente esse permissivo aponta para uma excepcionalidade, onde o indivíduo se vê obrigado a agir diante das circunstâncias. Assim, a defesa deve consistir num ato em que não se tem escolha, quando aquela atitude era a única possível e não podia ser substituída por outra menos danosa.
A proporcionalidade de valores entre a ofensa ao bem jurídico e sua defesa também está baseada nos princípios de proteção e defesa do direito, de maneira que, a priori, a legítima defesa dessa proteção privada, dentro dos parâmetros necessários, é consideravelmente ampla. Não se exige, portanto, que o ofendido use de proporcionalidade na sua defesa, mas que faça uso do “necessário” para afastar a ofensa. Ainda que autorize um dano desproporcional quando tal agressão somente poderia ser afastada daquele modo. Para Claus Roxin (p. 1998, p. 200-201): “[...] admite-se que pode sacrificar-se um bem jurídico muito valioso para a conservação de outro de menor valor, se com isto se afastar, ao mesmo tempo, uma agressão contra o ordenamento jurídico. O legislador considera em tão alto grau o valor que tem a defesa ou a supremacia do direito face ao ilícito, que permite que a balança se incline para o lado da defesa.”
Não se exige equivalência de bens jurídicos afetados na reação e agressão. Não se exige mesma potencia lesiva na agressão e reação. O que se exige é que, no caso concreto, diante das circunstâncias enfrentadas pelo ofendido, sua reação seja considerada moderada. Sobre isso, comenta Alves (1957, p. 69-70): “A moderação existe em razão da necessidade de defesa e não depende da rigorosa proporcionalidade entre ataque e repulsa ou entre importância do bem ofendido e importância do bem que vai ser atingido pela reação, quando in concreto, foram utilizados meios que mesmos desproporcionados, eram, apesar de tudo, os absolutamente indispensáveis para uma eficiente defesa.”
A relativização da moderação no caso concreto deve ser feita mediante análise das circunstâncias do fato.
Sobre a impossibilidade de manter a razão nos momentos de injusta agressão, há muitos séculos, comentou o filósofo Aristóteles em Ética a Nicômaco: “Qualquer um pode zangar-se –isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e de maneira certa – não é fácil”.
Em consonância, adverte Mirabete (2004, p. 185): “Deve o sujeito ser moderado na reação, ou seja, não ultrapassar o necessário para repeli-la. A legítima defesa, porém, é uma reação humana e não se pode medi-la com um transferidor, milimetricamente, quanto à proporcionalidade de defesa ao ataque sofrido pelo sujeito. Aquele que se defende não pode raciocinar friamente e pesar com perfeito e incomensurável critério essa proporcionalidade, pois no estado emocional em que se encontra não pode dispor de reflexão precisa para exercer sua defesa em eqüipolência completa com a agressão. Não se deve fazer, portanto, rígido confronto entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente superior ao primeiro, sem que por isso seja excluída a justificativa, e sim entre os meios defensivos que o agredido tinha a sua disposição e os meios empregados, devendo a reação ser aquilatada tendo em vista circunstância do caso, a personalidade do agressor, o meio ambiente etc. A defesa exercita-se desde a simples atitude de não permitir a lesão até a ofensiva violenta, dependendo das circunstâncias do fato, em razão do bem jurídico defendido e do tipo de crime em que a repulsa se enquadraria.”
Referências
ALVES, Roque de Brito. A moderação na legítima defesa. 1957. 181 f. Tese apresentada no concurso para docente livre em Direito Penal –Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Apelação n. 00255859620138080035. Desembargador Sérgio Bizzotto Pessôa de Mendonça. Relator: Vitória, ES, 28 de abril de 2016.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.
JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual do direito penal: parte geral. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1998.
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 23/08/2020