Dr. Pedro, dor e depressão
Como ser humano que confiou demais na estrutura corporal, Lara relegou ao esquecimento a humanidade do mesmo. Portanto, falível e frágil diante dos abusos cometidos: postura incorreta mantida por horas a fio e viagens a trabalho de cá para lá e de lá para cá, entre São Paulo, Santos e São José dos Campos. E, quando afirmo “horas a fio”, não me refiro a 4 ou 5 ou 10 ou 12 horas num dia sim e noutro dia não. Explicito uma constância exacerbada de falhas. Acredito mesmo que desde a adolescência cometera pecados dessa natureza, quando sentada garbosamente ao piano não parava de tocar enquanto não considerasse perfeita e execução de determinada peça musical. O sorriso orgulhoso do pai e o possível desespero dos vizinhos, pela repetição de uma mesma música, por tão longo tempo, resplandecia-lhe a memória.
Sempre fora muito intensa ao expressar suas sensações: horas incontroláveis de pintura; depois, horas infindáveis de estudos científicos; depois, horas eternas de poesia... Não conseguia fazer um pouquinho de cada coisa, porque seu processo criativo a impedia. Estudava, não para que a vida passasse mais depressa, nem pintava para distrair o espírito, nem escrevia porque nada mais tinha a fazer. Era arquiteta famosa, pintora e poeta. A pianista, pelas vicissitudes da vida, adormecera nas brumas do passado. No mais, criava o tempo todo.
Assim, eis no que deu. Sua coluna resolvera fazer graça e consequentemente fazia-a, de quando em quando, perder a graça, pelos abusos cometidos. Lara entristecera, expressão de humanidade, até então, desconhecida em suas atitudes, pela alegria e felicidade que sempre ostentara.
Surpreendeu-se com as consequências da dor. E, como não poderia ser diferente, resolveu estudá-la, entendê-la e cuidá-la, para vencê-la. Iniciou sessões de fisioterapia diariamente. Somente em último caso ingeria algum remédio.
Quando se deu conta da súbita melancolia consultou-se com Dra. Tânia, uma das psicólogas da clínica. Nos primeiros encontros chorou muito... por não compreender as razões daquela angústia infinda.
Outro dia consultou, pela segunda vez, o clínico geral Dr. Pedro. Levou-lhe alguns exames solicitados anteriormente. Excelente médico. Atencioso, aos mínimos detalhes. Bem, este não fora propriamente o juízo formulado à primeira consulta. Achara-o um profissional desagradável, mal humorado e, por que não dizer, grosseiro? Perguntassem, não saberia explicar por qual motivo retornara. Após alguns minutos de conversa confessou-lhe isso.
O médico fixou-a, por detrás dos óculos caídos ao nariz, coçou a barba branca e falou-lhe: - Sabes por que me achaste chato?
Diante do silêncio invasivo, continuou: - Quando inquirida, respondias pela metade, passando logo para outro assunto. Tentavas manipular a consulta e porque te interrompia, para que me respondesses a pergunta anterior, incomodei-te.
- Fiz isto? Não sou mal educada...
- Sim, fizeste... - Nenhum ruído no ar.
- Mas... posso dizer-te uma coisa... - alegou Dr. Pedro - vinte dias depois, estás com o pensamento mais organizado... é visível!
Imediatamente, uma alegria peralta inundou o rosto de Lara, que se desculpou, encabulada: - Estava com muita dor e muito triste... Chorava a toa, pelos cantos da casa... Até procurei a psicóloga...
Incomodava-lhe aceitar as novas circunstâncias e confessar-se fragilizada emocionalmente, ela – a Leoa – frente a um estranho...
- Afastei-me de tudo e de todos, porque detesto reclamar da vida! Sou assim... prefiro oferecer sorrisos... - murmurou com os olhos repletos de lágrimas.
- Sentes o resultado da fisioterapia?
- Claro... estou muito melhor!
- Melhorarás ainda mais... - disse-lhe o médico, pacificador.
Lara sorriu, agradecida, enquanto Dr. Pedro estendia-lhe aquele envelope branco.
- Teus exames estão excelentes!... Todos! Meus parabéns!
- Mas, então...
- Fica feliz por isso... e muito!
- Claro! Mas, agora, estou mais confusa...
- Escuta-me! Num quadro de dor crônica como o teu, a depressão é consequência! Por tal razão, esta é uma clínica interdisciplinar. Clínica de dor, se não tem a presença de um psicólogo, deve fechar as portas, porque a dor caminha ao lado da depressão.
Aquela palavra horrível! Detestava-a! Fora seu fantasma, por medo de entregar-lhe os pontos! Mas, naquele momento, soava-lhe em acordes afinados.
- É preciso cuidar do corpo e da mente. Menos de um mês após nossa primeira consulta, os resultados são visíveis! Continua o tratamento fisioterápico, lado a lado à psicoterapia. Não será tudo de um dia para o outro, mas a cabecinha melhorará à medida que abrandarem as dores do corpo.
Ai, que bom! Desvendar um pedacinho da sua tristeza para alimentar a certeza de que poderia subjugá-la, se cuidasse do corpo, causou-lhe felicidade infantil. Lara sabia daquilo, sempre soubera, mas, esquecera-se momentaneamente. Bom ter um profissional estudioso e consciente para relembrar-lhe. Inteligente e desejosa de ultrapassar o momento difícil, ouviu e reapreendeu.
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Na rua, um sorriso aberto enfeitava-lhe o rosto, de ponta a ponta.
- Estás alegre! Mas... hoje era dia de consulta com a psicóloga? – perguntou-lhe o compreensivo namorado, à saída da clínica.
- Não. Fui somente entregar meus exames ao clínico geral...
- Só isso? Mas, esse médico hoje te fez muito bem!
Sorriram e, dentro do carro, Lara abaixou o espelhinho para visualizar o rosto. Abriu a bolsa, apanhou o baton vermelho e admirou-o na boca carnuda.
- Vamos tomar um sorvete, amor? - perguntou, cativante.
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Mais tarde, nos braços do amado, quedou-se a pensar sobre a necessidade de ir ao médico somente para ouvir a verdade milenar: mens sana in corpore sano.
Sorriu um sorriso torto, daqueles que, na infância, considerava lindo na boca das artistas e respondeu-se: sim, era necessário. Ao momento da fragilidade corporal a mente cansara, tornando mais difícil a captação de qualquer possibilidade de cura. Afinal... relembrou enternecida Dr. Pedro a dizer-lhe que, para isto, ELE era médico e ELA a arquiteta, pintora e poeta...
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Rio de Janeiro, 18 de setembro de 2010 – 10h19
Reformulada em 25 de setembro de 2010 – 23h23
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 21/10/2018