Neologismo: um novo mundo no mundo das palavrasSílvia M L Mota
“Deixei cair, durante a conversa, meia dúzia de
neologismos. Foi como se estivesse a distribuir
chocolates a meninos gulosos. Nenhum demonstrou o
menor estranhamento em relação às palavras.
Começaram a servir-se delas logo ali, com propriedade e
inteligência, como se sempre as tivessem utilizado.”
(AGUALUSA, 2010, p. 218).
Noções conceituais
O neologismo configura um mundo irrestrito de possibilidades criativas. É a denominação oferecida a uma nova palavra, na língua que nasce da necessidade de designar novos objetos ou novos conceitos ligados às diversas áreas do conhecimento. Considero-os belos, quando inseridos ao contexto.
Por quê, a criação de neologismos?
Ao interrogar, em seu texto “Abertura da seção clínica”, sobre o que determina o uso que se faz de uma língua, Lacan assinala que as palavras do dicionário não são suficientes para dar conta do uso da língua e lança uma definição no mínimo enigmática sobre o objeto ao qual Saussure se debruça ao longo de seu ensino. Assim nos diz Lacan: “A língua é, qualquer que ela seja, chiclete. O inusitado é que ela guarda suas coisas” (LACAN, 2001 [1977], p. 7).
Processos de criação
Os neologismos são criados por meio de processos diversificados, entre esses: justaposição, aglutinação, prefixação, sufixação, abreviação, importação de vocábulos existentes em uma outra língua ou, ainda, através de um novo sentido oferecido a uma palavra pré-existente. Afirma Campos (2012, p. 1-2), que ao usarem o recurso do neologismo, os escritores: “[...] demonstram conhecer o sistema linguístico e se apoiam em sua sensibilidade e intuição de artífices e artesãos da palavra para se expressarem através de todos os meios que a língua lhes oferece, numa harmonia bem trabalhada para gerar expressividade, pois ali nada parece artificial ou gratuito.”
Alguns autores e as suas criações
Sabemos que autores diversos criaram neologismos, mas, se até mesmo para desconstruir é necessário saber os caminhos da construção, veja-se o valor da última.
Não abrolharam do nada as palavras inventadas por Guimarães Rosa. Não vieram ao mundo de forma imatura e nem a partir de enganos detectáveis do autor. Seu nascer respaldou-se em um conhecimento linguístico extraordinário. Guimarães Rosa cunhou novos termos ao desenterrar palavras do português arcaico e da fala do povo. A professora Nilce Sant'Anna Martins, por dez anos consecutivos estudou a sua obra, desvendando a composição e o significado de 8000 palavras. Utilizado na abertura de romance "Grande Sertão: Veredas", o mais famoso neologismo do nobre autor foi "nonada", que significa "coisa sem importância". A estudiosa descobriu que resulta da fusão de "non", do português arcaico, com a palavra "nada".
Por outros caminhos, o psicanalista Jacques Lacan desenvolveu, a partir de uma releitura de Freud, um fausto conceitual inovador e denso, em que se sobressaem uma sintaxe incomum e a vigorosa criação de neologismos, especialmente na última etapa do seu ensino (1971-1981). Entre esses, destaco cinco: lalangue, l’apparole, parlêtre, plus-de-jouir e sinthome. Essa produtividade neológica oferece consequências sobre a tradução da sua obra.
Poderia citar outros autores que se lançaram à criação de neologismos, mas o caráter deste texto é perfunctório e, portanto, fico por aqui.
A casuística
Pela casuística dos neologismos, relembro as explicações de alguns autores de que se algo foi escrito é porque existe e se existe certamente poderá justificar-se. Neste momento, há de se ressaltar, que as justificativas não se estabelecem para encobrir meros enganos associados à preguiça intelectual, mas de buscas conscientes. É possível aceitar o adágio brasileiro: “Atirei no que vi e acertei no que não vi?” Sim, claro que sim! Mas, na Literatura, o atirar primeiro não pode ser realizado sempre a esmo. Fosse assim, estimularíamos a irresponsabilidade. Seria ao mínimo bizarro, que na Literatura fosse diferente.
A intuição
O neologismo se projeta sobre a intuição, que não deve ser confundida com iluminação miraculosa. Também não se trata de reflexão, meditação ou introspecção. A intuição seria percepção ou a sabedoria experimentada, inconsciente, do que foi aprendido e elaborado. É, portanto, conexão entre teoria e experiência vivenciada. Burden (1985), expõe a impossibilidade de descrever verbalmente o significado, natureza e função da intuição, porque a intuição deve ser compreendida pela intuição. Ensina que a intuição é chamada por diferentes nomes e encarada através de diferentes ângulos, tais como: "algo que se manifesta com a ajuda do terceiro olho", "algo que vem de Deus", ou "algo que se manifesta através de pressentimentos e impressões instantâneas iniciais das pessoas." Lembra ainda, que, muitas vezes, no início do processo intuitivo, algumas pessoas revelam a capacidade de pressentir o conteúdo da correspondência, antes mesmo dela chegar, ou tomam conhecimento da aproximação de uma visita, embora esta não tenha sido anunciada. Mas, segundo a autora, apesar de parecerem surpreendentes e engraçadas, essas experiências não são importantes, a menos que nos levem aos recessos mais profundos da intuição. Além disso, são vistas pela autora como formas inferiores de percepção psíquica, que não nos fazem melhores ou mais úteis, assim como não nos fazem mais felizes. Castello de Almeida (2017), por sua vez, salienta que a intuição delirante é inopinada, original e enigmática; é fenômeno pleno que inunda o sujeito, revelando-lhe um cunho original: a língua fundamental, a palavra enigma, a palavra plena que diz muito a respeito do sujeito.
Do que se expõe, a intuição aparece-nos como um atributo inato e acessível ao ser humano. A erudição de nada vale sem a intuição e vice-versa. Por esse motivo, considero que o conceito da palavra neologismo transcende o conceito “intuitivo” que o falante possui sobre a palavra.
A permissividade
Compactuo com o aforismo de que "Ao escritor tudo pode", mas desde que o referido autor seja consciente da sua realização. Aliás, usar uma palavra conscientemente, fora do seu real significado, é oferecer-lhe um "sentido figurado" - não é neologismo. E, mesmo o "sentido figurado", deve efetivar-se por consciência e não por ignorância do real significado da palavra utilizada. Algumas pessoas confundem... e ficam bravas quando alertadas.
Até mesmo a nova linguagem inventada pelos jovens, quando se comunicam através dos computadores ou dos celulares, é compreendida e justificada pelos pedagogos e demais educadores. Reconhecem que os tempos são outros e que a síntese é imperativa. Na área poética, os poetrix são apreendidos como "poemetos da Internet" e fazem sucesso, justamente, porque os jovens do mundo atual evidenciam uma preguiça irrestrita de ler textos e/ou poemas extensos. As explicações serão aceitas, desde que não se alteiem somente para encobrir os nossos erros e que os fundamentos se afastem dos “achismos”, porque guardam esses uma subjetividade ilusória. Quando a farsa é detectada, arriscamo-nos ao escárnio.
Somos avaliados o tempo todo? Sim, somos. Se ostentamos o acordo social de criar e servir de exemplo às atuais e futuras gerações e, se o nosso trabalho se destaca no mundo sociocultural, maior a responsabilidade edificada.
Referências
AGUALUSA, José Eduardo.
Milagrário pessoal: apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação de morte. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.
ALMEIDA, Wilson Castello de.
Elogio a Jacques Lacan. São Paulo: Summus, 2017.
BURDEN, V.
O processo da intuição: uma psicologia da criatividade. Trad. SILVA, D. C. da. São Paulo: Pensamento, 1985.
CAMPOS, Solange Maria Moreira de. Malabarismos lexicais na literatura: os neologismos visitam a sala de aula. Anais do SIELP, Uberlândia: EDUFU, v. 2, n. 1, 2012, p. 1-14.
Instituto de Letras e Linguística. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/wp-content/uploads/2014/07/volume_2_artigo_277.pdf. Acesso em: 23 maio 2018.
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 25/06/2018
Alterado em 26/06/2018