Juramento de Hipócrates
Professora Sílvia M L Mota
Entre as celebridades que viveram na mais remota Antiguidade “[...] quando ainda as brumas dos tempos fabulosos não se tinham de todo dissipado”
[1], a figura de Hipócrates destaca-se imponente. Transcendendo o aspecto de um homem entronizado como um semideus em sua glória de gênio tutelar da Medicina, são-lhe atribuídos cerca de 60 tratados, dispostos em 72 livros, o
Corpus Hipocraticum[2]. Constam dessa coleção, sete livros que tratam exclusivamente da ética médica:
Juramento,
Da Lei,
Da Arte,
Da Antiga Medicina,
Da Conduta Honrada,
Dos Preceitos,
Do Médico.
[3] Dentre essas obras, destaca-se o
Juramento, proferido por todos aqueles considerados hábeis para exercer a Medicina, na ocasião em que são aceitos por seus pares e acolhidos como novos componentes da classe médica.
No tratado
Da natureza do homem, encontra-se a associação entre os quatro humores e as qualidades primárias. A despeito de ser considerado por Robert Joly
um texto muito hipocrático[4], as considerações a respeito da natureza do homem não são comprovadamente da lavra de Hipócrates, mas do seu discípulo e genro, Pólibo. Em prol dessa autoria, menciona-se Aristóteles, quando em a
História dos Animais (III, 512 b12-513a7) cita e transcreve o parágrafo 11 do tratado
Da natureza do homem: “[...] disseram assim Syénesis e Diógenes; Pólibo, porém, disse como se segue [...]” Outra referência à escrita de Pólibo encontra-se em o
Anônimo de Londres (XIX, 2 et seq.), que se refere à primeira parte do tratado, estendendo-se até o oitavo parágrafo. Henrique Cairus escreve a respeito desta contenda e traduz o tratado
Da natureza do homem, procurando ser o mais fiel possível ao “estilo duro e visceralmente antiliterário” dos tratados do
Corpus Hippocraticum.
[5]
Segue-se uma súmula do pensamento hipocrático:
1 A medicina hipocrática é concebida como técnica (
léknê) no mais rigoroso sentido da paIavra ou seja, um conhecimento preocupado em apurar o porquê e o quê daquilo que se faz.
2 O que se faz como remédio e o que é a moléstia acham-se referidos à noção da Natureza (
tisis) englobando todas as coisas.
3 A noção “fisiológica” da moléstia acarreta a definida rotura da medicina com o puro empirismo e com a magia.
4 Concomitantemente surge a consciência das limitações da arte de curar, enquanto se desperta a confiança na capacidade do médico ampliar seus poderes mediante a adoção de um método adequado.
5 Como norma terapêutica fundamental é estabelecido o princípio que ordena “favorecer” e jamais “prejudicar”.
6 A consciência da dignidade da missão médica é integrada nos campos profissional, social e moral.
O célebre Juramento Hipocrático consubstancia as normas da última dessas diretrizes, hoje inseridas no campo da Bioética e Biodireito. Existem, preservados do furor do tempo, quatro manuscritos do Juramento Hipocrático.
Conforme anuncia Bernardes de Oliveira, o primeiro manuscrito
Urbinas Graecus 64, da Biblioteca Apostólica Vaticana, localiza-se entre os séculos X e XI e as palavras iniciais esclarecem: “Texto do Juramento Hipocrático que pode ser jurado pelos cristãos”. O documento é escrito em forma de cruz para demarcar o patrocínio religioso e inicia-se com a saudação laudatória habitual: “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo; para sempre bendito seja [...]”. Sua redação acompanha o texto clássico com algumas variantes e alterações das quais a principal é a omissão da cláusula referente à operação da calculose vesical. O segundo manuscrito, por ordem de antiguidade, é o
Marcianus Venetus Z 269, do século XI, pertencente à Biblioteca de S. Marcos de Veneza. Apresenta-se como sendo o texto original. Inicia-se com a invocação dos deuses da mitologia grega, consoante sua origem pagã. O terceiro manuscrito é o
Vaticanus Graecus 276,
fólio 1 recto, do século XII, da Biblioteca Apostólica Vaticana. O quarto documento é o Manuscrito do século XII, da Biblioteca Nacional de Paris, que encerra a versão pagã, com a invocação inicial dos deuses da mitologia grega e corresponde ao texto mais difundido atualmente.
[6] Os demais manuscritos conhecidos do Juramento de Hipócrates remontam aos séculos XIV e XV. Conquanto equivalentes, verificam-se mínimas diferenças de redação.
O Juramento de Hipócrates mostra o quanto era elevado o conceito que então se fazia da ética profissional no exercício da arte de curar, ao mesmo tempo que deixa à vista “a série de vícios e crimes que se acoitavam nos costumes da velha sociedade helênica!”
[7]
A mais velha e indubitável referência impressa ao Juramento deve-se a Scribonius Largus, médico do Imperador Cláudio, século 1127; e o texto completo aparece pela primeira vez na Coletânea de Autores Antigos denominada
Articela.
A imperativa vedação à interrupção da gravidez através de drogas ou manobras diretas está presente nos dois textos antigos, o clássico pagão e o cristão, mas foi omitida na versão usada pela Universidade de Montpellier que serviu de modelo para muitas adaptações modernas. A observação hipocrática que condena a interrupção da prenhez sem motivos solidamente reconhecidos como legítimos, é tema de ponta no mundo jurídico da atualidade, quando avultam os problemas do controle da natalidade, direcionados pelos interesses das diversas áreas: médica, política e religiosa, o que dificulta o estabelecimento de regras jurídicas a respeito do tema.
Embora sem comprovação, aceita-se que os citados manuscritos reproduzem o texto original de quando o mesmo foi escrito.
Traduções do texto original
A partir dos manuscritos anteriormente referidos, realizaram-se traduções do Juramento de Hipócrates em latim, hebraico, árabe e nos demais idiomas.
Duas traduções em inglês e duas em francês tornaram-se clássicas e servem de referência para as versões em outros idiomas. As versões clássicas em inglês são a de Francis Adams, de 1849, transcrita na coleção Harvard Classic, v. 38, de 1910; e a versão de W. H. S. Jones, realizada a partir do original grego, que se encontra na coleção Loeb Classical Library, v. 1,
Hipócrates, desde 1923. As versões em francês são a de Émile Littré,
Oeuvres complètes d'Hippocrate, t. IV, publicada pela Editora J. B. Ballière, em 1844; e a de Charles Daremberg, de 1855.
Entre as traduções francesas, aquela citada e reconhecida como a mais próxima do original grego, encontra-se em
Oeuvres complètes d’Hippocrate, edição bilíngue publicada por E. Littré, através da Editora J. B. Ballière, em 1844. Outra tradução em francês reconhecida é a de Charles Daremberg, publicada na obra
Oeuvres choises d’Hippocrate, pela editora parisiense Labe, em 1855.
Transcreve-se a tradução de Adams (em inglês) e a de Littré (em francês):
The oath by Hippocrates
(Translated by Francis Adams)
I SWEAR by Apollo the physician, and Aesculapius, and Health, and All-heal, and all the gods and goddesses, that, according to my ability and judgment, I will keep this Oath and this stipulation- to reckon him who taught me this Art equally dear to me as my parents, to share my substance with him, and relieve his necessities if required; to look upon his offspring in the same footing as my own brothers, and to teach them this art, if they shall wish to learn it, without fee or stipulation; and that by precept, lecture, and every other mode of instruction, I will impart a knowledge of the Art to my own sons, and those of my teachers, and to disciples bound by a stipulation and oath according to the law of medicine, but to none others. I will follow that system of regimen which, according to my ability and judgment, I consider for the benefit of my patients, and abstain from whatever is deleterious and mischievous. I will give no deadly medicine to any one if asked, nor suggest any such counsel; and in like manner I will not give to a woman a pessary to produce abortion. With purity and with holiness I will pass my life and practice my Art. I will not cut persons laboring under the stone, but will leave this to be done by men who are practitioners of this work. Into whatever houses I enter, I will go into them for the benefit of the sick, and will abstain from every voluntary act of mischief and corruption; and, further from the seduction of females or males, of freemen and slaves. Whatever, in connection with my professional practice or not, in connection with it, I see or hear, in the life of men, which ought not to be spoken of abroad, I will not divulge, as reckoning that all such should be kept secret. While I continue to keep this Oath unviolated, may it be granted to me to enjoy life and the practice of the art, respected by all men, in all times! But should I trespass and violate this Oath, may the reverse be my lot.
Serment d’Hippocrate
(Traduction de Littré)
Je jure, par Apollon, médecin, par Esculape, par Hygie et Panacée, par tous les dieux et toutes les déesses, les prenant à témoin, que je remplirai, suivant mes forces et ma capacité, le serment et l'engagement suivants: je mettrai mon maître de médecine au même rang que les auteurs de mes jours, je partagerai avec lui mon avoir, et, le cas échéant, je pourvoirai à ses besoins; je tiendrai ses enfants pour des frères, et, s'ils désirent apprendre la médecine, je la leur enseignerai sans salaire ni engagement. Je ferai part des préceptes, des leçons orales et du reste de l'enseignement à mes fils, à ceux de mon maître, et aux disciples liés par un engagement et un serment suivant la loi médicale, mais à nul autre. Je dirigerai le régime des malades à leur avantage, suivant mes forces et mon jugement, et je m'abstiendrai de tout mal et injustice. Je ne remettrai à personne du poison, si on m'en demande, ni ne prendrai l'initiative d'une pareille suggestion; semblablement, je ne remettrai à aucune femme un pessaire abortif. Je passerai ma vie et j'exercerai mon art dans l'innocence et la pureté. Je ne pratiquerai pas l'opération de la taille, je la laisserai aux gens qui s'en occupent. Dans quelque maison que j'entre, j'y entrerai pour l'utilité des malades, me préservant de tout méfait volontaire et corrupteur, et surtout de la séduction des femmes et des garçons, libres ou esclaves. Quoi que je voie ou entende dans la société pendant l'exercice ou même hors de l'exercice de ma profession, je tairai ce qui n'a jamais besoin d'être divulgué, regardant la discrétion comme un devoir en pareil cas. Si je remplis ce serment sans l'enfreindre, qu'il me soit donné de jouir heureusement de la vie et de ma profession, honoré à jamais parmi les hommes; si je le viole et que je me parjure, puissè-je avoir un sort contraire!
Em português, apresentam-se inúmeras traduções, quase todas baseada nos textos clássicos em inglês ou francês e outras feitas diretamente do texto grego, nos dias de hoje, acessados facilmente em reproduções impressas.
As traduções oferecidas, em todos os idiomas, diferem-se nos aspectos condizentes à linguagem empregada, ainda que mantenham o núcleo central dos preceitos que compõem o juramento.
Eis a tradução, em português, de Bernardes de Oliveira, autor do livro A evolução da medicina até o século XIX, baseada no texto inglês de Jones.
Juramento de Hipócrates
“Juro por Apolo Médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com meus conhecimentos e meu critério, este juramento: Considerar meu mestre nesta arte igual aos meus pais, fazê-lo participar dos meios de subsistência que dispuser, e, quando necessitado com ele dividir os meus recursos; considerar seus descendentes iguais aos meus irmãos; ensinar-lhes esta arte se desejarem aprender, sem honorários nem contratos; transmitir preceitos, instruções orais e todos outros ensinamentos aos meus filhos, aos filhos do meu mestre e aos discípulos que se comprometerem e jurarem obedecer a Lei dos Médicos, porém, a mais ninguém. Aplicar os tratamentos para ajudar os doentes conforme minha habilidade e minha capacidade, e jamais usá-los para causar dano ou malefício. Não dar veneno a ninguém, embora solicitado a assim fazer, nem aconselhar tal procedimento. Da mesma maneira não aplicar pessário em mulher para provocar aborto. Em pureza e santidade guardar minha vida e minha arte. Não usar da faca nos doentes com cálculos, mas ceder o lugar aos nisso habilitados. Nas casas em que ingressar apenas socorrer o doente, resguardando-me de fazer qualquer mal intencional, especialmente ato sexual com mulher ou homem, escravo ou livro. Não relatar o que no exercício do meu mister ou fora dele no convívio social eu veja ou ouça e que não deva ser divulgado, mas considerar tais coisas como segredos sagrados. Então, se eu mantiver este juramento e não o quebrar, possa desfrutar honrarias na minha vida e na minha arte, entre todos os homens e por todo o tempo; porém, se transigir e cair em perjúrio, aconteça-me o contrário.”
Hipócrates, naqueles tempos, preconizava a prática do
bonum facere (fazer o bem) associada ao
primum non nocere (nunca fazer o mal), com o escopo de promover a Justiça.
Os ensinamentos de Hipócrates permanecem atuais. No VI Congresso Internacional do Neo-hipocratismo realizado em Madrid, no ano de 1965, várias deliberações foram tomadas no sentido não de reviver as ideias de Hipócrates no terreno científico, pois está fora de dúvida que tal atitude não teria a menor justificativa, mas de valorizar o fundo moral e filosófico nelas encerrado. A partir dessa conduta, surgiram novas diretrizes para, sem detrimento dos avanços na área médica, sejam mantidos alinhados e incorruptíveis os espeques deontológicos da Medicina.
Pontos basilares foram propostos:
a) necessidade de ser mantido um humanismo médico em atenção ao vulto do doente como ser orgânico, moral e social;
b) primazia da clínica como base do progresso científico, sem prejuízo da indagação laboratorial adjuvante e esclarecedora;
c) reconhecimento das particularidades individuais, de modo a levar a conduta clínica e a terapêutica a agirem sempre tendo presente o caráter personalizado de cada paciente;
d) restabelecimento da figura do médico de família como a melhor maneira de se tornar clara a série de condições personalíssimas inerentes a cada doente indispensáveis a uma assistência médica eficiente na qual entre, quando necessárias, as contribuições das diversas especialidades;
e) convite ao melhor conhecimento e emprego dos agentes naturais dentro da medicina preventiva e curativa e mais cuidadosa avaliação das virtudes e riscos das medicações, principalmente as de aparecimento recente; com a justa indicação das operações cirúrgicas perante seus perigos e vantagens;
f) maior ênfase no estudo do estado hígido dentro do preceito da defesa e conservação da saúde, pelo respeito às normas salutares de vivere secundum naturam da vix medicatrix e do nil nocere.
O juramento hipocrático é considerado um patrimônio da humanidade pelo alto sentido moral que ostenta. Apresenta-se como “[...] obra de arte e sabedoria, só comparável às mais altas criações do espírito humano.”
[8] Através dos séculos, repete-se como um compromisso solene e imprescindível dos médicos, ao ingressarem na profissão.
Notas[1] REIS, Mauro Moutinho dos.
Medicina greco-romana. Rio de Janeiro: Mauro Familiar Editor, 1975, p. 20.
[2] Os escritos, atribuídos a Hipócrates e seus discípulos, começaram a ser reunidos na Biblioteca de Alexandria, a partir do século III a.C. Como destaca Entralgo, os responsáveis pela compilação desses documentos, realizaram a seleção com reduzido espírito crítico, reunindo um conjunto de extratos, resumos e fragmentos distintos a outros considerados legítimas obras-primas. ENTRALGO, Pedro Lain.
La relación médico-enfermo. Madrid: Alianza Editorial, 1983.
[3] CASTIGLIONI, Arturo.
Histoire de la médecine. Paris: Payot, 1931, p. 131.
[4] JOLY, Robert.
Le niveau de la Science hippocratique: contribution à la psychologie de l'histoire des sciences. Paris: Les Belles Lettres, 1966, p. 5.
[5] CAIRUS, Henrique. Da natureza do homem: corpus hippocraticum.
História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 395-430, jul./out. 1999. ISSN 0104-5970. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701999000300009&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 5 ago. 2004.
[6] OLIVEIRA, A. Bernardes de.
A evolução da medicina: até o início do século XX. São Paulo: Livraria Pioneira, 1981, p. 73-81. Capítulo 8: Medicina da Antiga Grécia. II- Hipócrates.
[7] REIS, Mauro Moutinho dos.
Medicina greco-romana. Rio de Janeiro: Mauro Familiar Editor, 1975, p. 50.
[8] REZENDE, Joffre Marcondes de. O juramento de Hipócrates.
Revista Paraense de Medicina, Belém, v. 17, n. 1, p. 38-47, abr./jun. 2003.
Referências
CAIRUS, Henrique. Da natureza do homem: corpus hippocraticum.
História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 395-430, jul./out. 1999. ISSN 0104-5970. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701999000300009&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 5 ago. 2004.
CASTIGLIONI, Arturo.
Histoire de la médecine. Paris: Payot, 1931.
JOLY, Robert.
Le niveau de la Science hippocratique: contribution à la psychologie de l'histoire des sciences. Paris: Les Belles Lettres, 1966.
OLIVEIRA, A. Bernardes de.
A evolução da medicina: até o início do século XX. São Paulo: Livraria Pioneira, 1981. 434 p.
REIS, Mauro Moutinho dos.
Medicina greco-romana. Rio de Janeiro: Mauro Familiar Editor, 1975. 194 p.
REZENDE, Joffre Marcondes de. O juramento de Hipócrates.
Revista Paraense de Medicina, Belém, v. 17, n. 1, p. 38-47, abr./jun. 2003.