Direito à intimidade genética
Texto contido em:
MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
O direito à intimidade[1] surge, frente ao cadente compasso do desenvolvimento, valorando de modo intenso as diversas formas de intromissão ilegítima no âmbito dos direitos da personalidade. Vem-se cumprindo atualmente a premonição de um célebre voto dissidente de uma sentença de 1928 da Suprema Corte Americana, na qual se afirmava que a intimidade era o direito mais apreciado pelos homens civilizados (LUÑO, 1994, p. 312).
O Juramento de Hipócrates já afirmava: “[...] qualquer coisa que eu veja ou ouça, profissional ou privadamente, que deva não ser divulgada, eu conservarei em segredo e contarei a ninguém.”
A garantia do sigilo das informações, na maioria dos Códigos de Ética Profissional, é um dever prima facie[2] de todos os profissionais e também das instituições. O artigo 8º do Convênio Europeu de Direitos Humanos, de 1950, cujo precedente é o artigo 12 da Declaração Universal de 1948 reconhece “o direito à intimidade pessoal e familiar e o segredo das comunicações.”[3]
A UNESCO, no art. 6 da sua Declaração sobre o genoma humano garante que nenhum indivíduo será discriminado com base em características genéticas e no art. 7º afirma que devem ser mantidos em sigilo, nas condições previstas em lei, quaisquer dados genéticos associados a uma pessoa.
Entende-se, pois, o direito à intimidade como o direito que a pessoa tem de fixar até que ponto pretende usufruir a sua própria solidão; até quando e até onde vai autorizar a interferência pública em sua esfera pessoal ou familiar. É um verdadeiro bem da pessoa, considerado entre os bens da personalidade, o que edifica o respeito à individualidade da pessoa. É referido pelos espanhóis como o derecho de estar solo; entre os anglo-saxões como o right to be let alone e entre os franceses é o vie privée doit être murée.
Na prática, consta ser a confidencialidade um mito romântico, pois é uma norma fundamental, mas não absoluta. Nos casos em que o paciente se nega a revelar a possível existência de um risco evidente para seus familiares, o imperativo de evitar possíveis prejuízos causados a outras pessoas limitam o dever de confidencialidade do médico.[4]
No Brasil, a Portaria 1.100/96 do Ministério da Saúde, no seu artigo 1º, enumera as doenças passíveis de notificação compulsória.[5] O Conselho Federal de Medicina recomenda que apenas se quebre a confidencialidade em circunstâncias excepcionais.
A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inc. X considera, com notável abrangência, a intrusão na esfera individual, protegendo o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, responsabilizando na seara civil quem violar este direito.
A pessoa titular da intimidade constitucionalmente protegida é a definida pelo Código Civil (art. 4º) e sua extinção (art. 10), nos termos ali previstos, determina o desaparecimento do âmbito privado correspondente, ou seja, da concreta intimidade até então protegida. Pode-se deduzir, portanto, que a intimidade corporal constitua o primeiro e mais imediato dos domínios da intimidade pessoal, resultando imune frente a toda a intromissão contra a vontade da pessoa.
Luciano Parejo Alfonso salienta que a intimidade corporal protegida não é uma entidade física – é, portanto, diversa do corpo humano - mas uma entidade cultural, derivada das estimativas e critérios arraigados à cultura da comunidade. O objeto da proteção é mais o sentimento de pudor e recato da pessoa conforme o padrão social vigente. (ALFONSO, 1994, p. 303).
A intimidade corporal protegida pode, em todo caso, chegar a ceder, em qualquer de suas expressões, ante exigências públicas, posto que não se trata de um direito absoluto. A violação da intimidade que requeira um interesse geral só poderá ser legitimada por uma decisão judicial, cujo conteúdo deve respeitar a dignidade da pessoa e não autorizar nenhum tratamento degradante.
No contexto social, a pessoa e seu âmbito privado suscita uma tensão do direito à intimidade com os direitos da liberdade de expressão e da comunicação. Há de ser estabelecida a diferenciação entre a liberdade de expressão e a de comunicação e recepção de informações. A primeira tem por objeto a expressão de pensamento, ideias e opiniões; a segunda se refere à comunicação e recepção livres de informação sobre fatos e, inclusive, somente sobre fatos que possam considerar-se noticiáveis. Essa distinção de conteúdo tem decisiva importância na hora de determinar a legitimidade do exercício das correspondentes liberdades, já que os fatos, por sua materialidade, são suscetíveis da prova da verdade, não sucedendo o mesmo com as ideias, as opiniões ou os juízos de valor.
No âmbito da relação médico-paciente, pode-se alegar que a informação genética é talvez o tipo mais pessoal de informação médica, já que afeta a saúde presente e envolve a prole futura. Por isso exige proteção através do segredo médico. A informação dos genes reclama por ser essencialmente privada, não sendo confiável a terceiros sem a permissão do afetado, salvo se a referida informação deva ser conhecida para evitar danos a terceiros.
No campo laboral, desde que não exista uma proteção legal eficaz contra a discriminação, nem os empregadores nem as empresas seguradoras de saúde deverão ter acesso a dados genéticos pessoais. Em caso diverso, o acesso às informações somente deverá ocorrer com a autorização explícita do indivíduo em questão.
A difusão dos dados pessoais a terceiras pessoas ou a empresas, companhias de seguro, entre outras, ocasiona, por vezes, um grave atentado à intimidade, colocando em risco expectativas da pessoa afetada. A jurisprudência vem trazendo soluções às imperdoáveis questões de discriminação e atentado aos direitos da personalidade do indivíduo, no campo da vida pública[6], familiar[7], a saúde laboral[8], dos seguros[9].
Existe nos Estados Unidos uma Lei de 1990, Americanos com incapacidades, que prevê sua aplicação na seara dos seguros, liberando as companhias privadas para discriminar sobre a base de dados genéticos. As companhias de seguros podem recusar a apólice a um portador são baseando-se em 25% de probabilidade de que tenha um filho afetado e tampouco cobrem enfermidades que se desenvolvem tardiamente, como a Corea de Huntington.
Pesquisadores e cientistas ligados às principais instituições de saúde dos Estados Unidos e organizações de mulheres e de advogados temem que os testes de diagnósticos genéticos adentrem a intimidade das pessoas com genes comprometidos. Embora em fase experimental, acredita-se que brevemente estarão disponíveis no mercado. Surgem projetos de lei, como o da cientista Louise Slaughter, que prevê a proibição, por exemplo, de que as seguradoras de saúde cancelem ou mudem os termos dos seguros baseadas em informações genéticas, dando margem a que os prejudicados possam processar as empresas.[10]
[1] Difícil qualquer aproximação conceitual da ideia de intimidade. Um breve repasse pela doutrina demonstra essa afirmação. Para Adriano de Cupis é o direito ao resguardo, aquele definido como o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere só a ela. (DE CUPIS, 1961, p. 129). Diogo Leite de Campos se coloca a respeito do direito à privacidade: “Ideia desconhecida. O individualismo é contemporâneo da progressiva interiorização, privatização, da vida. O indivíduo descobre-se desvinculado de qualquer ordem social,devendo, pelo contrário, os princípios destas serem procurados pelo indivíduo. Cada um, auto-suficiente, é uma sociedade em si mesma. Cada homem, uma ilha; cada casa, um castelo. Na nova sociedade, desordenada, perdida a ordem natural, tudo é em princípio privado.” (CAMPOS, 1995, p. 97). Outro autor expressa ser a intimidade a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna. (COSTA JR., 1995, p. 12).
[2] Este conceito foi proposto por Sir David Ross (1930, p. 19-36). Ele propunha que não há, nem pode haver, regras sem exceção. O dever prima facie é uma obrigação que se deve cumprir, a menos que ela entre em conflito, numa situação particular, com um outro dever de igual ou maior porte. Um dever prima facie é obrigatório, salvo quando for sobrepujado por outras obrigações morais simultâneas.
[3] Art. XII da Declaração: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.” Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948.
[4] A quebra de confidencialidade é eticamente admitida apenas quando: um sério dano físico, a uma pessoa identificável e específica, tiver alta probabilidade de ocorrência; um benefício real resultar desta quebra de confidencialidade; for o último recurso, após ter sido utilizada persuasão ou outras abordagens, e, por último, este procedimento deve ser generalizável, sendo novamente utilizado em outra situação com as mesmas características, independentemente de quem seja a pessoa envolvida. Exceção ao sigilo profissional ocorre quando, por força de legislação existente e por justa causa, um profissional é obrigado a comunicar informações sigilosas que teve acesso em função de sua atividade. São algumas dessas situações: testemunhar em corte judicial, em situações especiais; comunicar, à autoridade competente, a ocorrência de doença de informação compulsória, de maus-tratos em crianças ou adolescentes, de abuso de cônjuge ou idoso, ou de ferimento por arma de fogo ou de outro tipo, quando houver suspeita de que esta lesão tenha sido resultante de um ato criminoso.
[5] Em todo território nacional: cólera, coqueluche, dengue, difteria, doença meningocócia e outras meningites, doença de Chagas (casos agudos), febre amarela, febre tifóide. Hanseníase, leishmaniose tegumentar e visceral, oncocercose, peste, poliomielite, raiva humana, rubéola e síndrome da rubéola congênita, sarampo, sífilis congênita, Síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS), tétano, tuberculose, varíola, hepatites virais. Em áreas específicas: esquistossomose (exceto nos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte); filariose (exceto em Belém e Recife); malária (exceto na região da Amazônia Legal). BRASIL. Doenças de Notificação Compulsória. Portaria 1100/96, do Ministro da Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 maio 1996, p. 9337.
[6] Policial militar, aprovado em concurso público, impetra mandado de segurança contra o Curso de Formação de Oficiais do Quadro de Oficiais Policiais Militares (CFO-QOPM) de São Paulo, por ter sido considerado inapto para o curso ao ficar comprovado ser portador do vírus HIV. Segurança concedida. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (3. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 216.708-1. Relator: Desembargador Mattos Faria. São Paulo, 8 de novembro de 1994. Voto vencido: Desembargador Alfredo Migliore: “[...] não há eiva de inconstitucionalidade no estabelecimento de pré-requisitos, que ao Poder-Público, considere essenciais, física, moral e intelectualmente, para o exercício de determinada função pública. A discriminação do edital é absolutamente legal.” Duas outras decisões ilustram discriminação às pessoas portadoras do vírus HIV e a divergência de posições no âmbito de um mesmo tribunal brasileiro. As duas decisões versam sobre motorista de ônibus que humilha e agride verbalmente passageiro aidético que se beneficia de passaporte para ingresso gratuito em transporte público. A primeira decidiu que restava improvada qualquer culpa da transportadora, no tocante aos fatos que deram origem à causa de pedir, descabendo a ação pretensão indenizatória. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. (8. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 08/96. Relator: Juiz Substituto de Desembargador Nilton Mondego de C. Lima. Rio de Janeiro, 5 de março de 1996. Revista Jurídica. Disponível em: <http://www.jol.com.br>. A segunda concede a indenização. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. (3. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 7.328/95. Relator: Desembargador Sylvio Capanema de Souza. Rio de Janeiro, 12 de março de 1996. Revista Jurídica. Disponível em: <http:/www.jol.com.br>.
[7] Autora internada em hospital para tratamento de lupus eritematose, foi fotografada, sem autorização, no refeitório, sendo a foto a foto publicada para ilustrar reportagem sobre AIDS. Embora não mencionando o nome e até sendo a foto de pessoa comum, o fato de ter sido reconhecida por parentes, amigos e colegas, muitos dos quais se afastaram, causando depressão e levando a novo internamento, prova que feriu o direito da personalidade, donde o chamado dano moral. Reparação devida. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. (4. Câmara). Civil. Apelação n. 4.166/95. Relator: Desembargador Semy Glanz. Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1995. Revista Jurídica. Disponível em: <http://www.jol.com.br>.
[8] "O agravante postula indenização de ex-empregadora, por exigência de realização e conseqüente prejudicial divulgação do correspondente resultado, de exame hematológico, soropositivo para AIDS. Recurso provido." BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (2. Câmara). Civil. Agravo de Instrumento n° 243.762-1. Relator: Desembargador J. Roberto Bedran. São Paulo, 7 de fevereiro de 1995. Revista Jurídica. Disponível em: <http://www.jol.com.br>. Outra interessante decisão que surge do campo laboral é a ação de indenização por dano moral proposta por empregado portador do vírus HIV, demitido pem virtude de odiosa discriminação, vedada pela Constituição Federal de 1988, do empregador, instituição bancária. Concedida a indenização. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. (6. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 596076380. Relator: Desembargador Paulo Roberto Hanke. Porto Alegre, 25 de junho de 1996. Revista Jurídica. Disponível em: <http:/www.jol.com.br>.
[9] Pela indenização de aidéticos contra planos de saúde que os eliminam do rol de beneficiados: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (13. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 236.701-2. Relator: Desembargador Marrey Neto. São Paulo, 31 de maio de 1994. Revista Jurídica, Internet: http://www.jol.com.br; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (16. Câmara). Civil. Apelação Cível n° 237.564-2. Relator: Desembargador Viana Santos. São Paulo, 18 de outubro de 1994. Revista Jurídica. Disponível em: <http://www.jol.com.br>.
[10] AMERICANOS lutam contra a discriminação genética. O Globo, Rio de Janeiro, 28 fev. 1997. 2. ed. O Mundo, p. 33.