A pessoa humana na genética: sujeito ou objeto?Texto contido em:
MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
De origem etimológica incerta, o termo pessoa vem de persona e parece ter nascido ligado ao teatro grego, com o significado de máscara (larva histrionalis), vestida pelos atores nas apresentações teatrais e religiosas. Utilizada como sinônimo de personagem, pressupõe aquilo que desempenha um papel, uma função própria. Para Almeida (1905, p. 18), o Direito generaliza a noção de pessoa, aplicando os vocábulos pessoa e personalidade sem ter muitas vezes ideia clara, nítida, precisa das qualidades, da capacidade, da extensão do poder que tal predicado pressupõe ou exige e compreende. O termo é único, mas a acepção diverge esquadrinhando desde o sentido figurado até a realidade objetiva, passando pelo mais instável sentido que o vocábulo pode suscitar até alcançar a ideia de uma existência incontestável. Dessa índole individual que se arroja ao universo, resulta a compreensão de como tal conceito se tornou sinônimo de sujeito, particularmente no mundo do direito romano, onde Cícero definia pessoa como o sujeito de direitos e deveres. O sujeito de qualquer direito é a personalidade humana e não a alma, ou o corpo, ou a soma destes. A personalidade se manifesta no exercício dos direitos, primeiramente, por meio do corpo. À primeira vista parece repulsivo considerar o corpo humano objeto de direito, como se fosse uma coisa, mas o mesmo não sucede quando se reflete que o direito sobre a própria pessoa não é um direito patrimonial e que nas relações de Família existem igualmente direitos que têm por objeto as pessoas (ESPINOLA, 1917, p. 299). O art. 2.312 do Código Civil argentino bem compreendeu a natureza desses direitos quando assim se exprimiu: “Há direitos, e os mais importantes, que não são bens, tais são certos direitos que têm sua origem na existência do indivíduo mesmo a que pertencem, como a liberdade, a honra, o corpo da pessoa, o pátrio poder, etc.” Embora estejam ali agrupados direitos personalíssimos (a liberdade e a honra), direitos sobre a própria pessoa (sobre o corpo) e direitos da Família (pátrio poder), o que se procurou salientar foi o caráter comum que apresentam, ou seja, de serem todos não patrimoniais. No dias atuais, os médicos e biólogos têm preferido ocupar-se da natureza e definição de ser humano como ponto de partida para construir o conceito de pessoa. Por sua vez, no mundo jurídico, Romeo Casabona (1994, p. 147) afirma que a situação atual leva a um conceito não unívoco da pessoa: “[...] polimorfo (segundo a perspectiva que se contemple) e funcional (segundo a finalidade que se persiga ou a aplicação a que se queira destinar o conceito).” O decisivo, pois, para a proteção jurídica não é o reconhecimento dessa condição de pessoa como sujeito de imputação de direitos e deveres, mas tão somente “[...] o começo da existência da vida humana - começo e final - tomando como ponto de partida critérios científicos; é essa realidade ontológica a que há de assumir o Direito, para concluir no que é próprio deste, o normativo, o axiológico.” Trabucchi (1967, p. 77) elucida que da expressão persona deriva uma qualidade do sujeito: a personalidade, quer dizer, sujeito de direito, com aptidão para tornar-se titular de qualquer situação de direito ou dever jurídico. A personalidade, em sentido jurídico é, portanto, a aptidão reconhecida pela lei para tornar-se sujeito de direitos e deveres; como pressuposto da concreta titularidade das relações, a personalidade corresponde à capacidade jurídica. A sutil distinção entre os dois conceitos está em que a personalidade é a abstrata idoneidade de tornar-se titular de relações, enquanto a capacidade jurídica é a medida de tal idoneidade que define os contornos da personalidade. No Brasil, a questão fustiga a polêmica em torno do art. 2º do Código Civil ao anunciar que a personalidade, a pessoa, começa a partir do nascimento com vida, sendo assegurados os direitos do nascituro desde a concepção. Entretanto, conforme a elaboração doutrinal e jurisprudencial posterior foi-se acentuando a ideia do reconhecimento e proteção de certos atributos inerentes ao homem, chamados direitos da personalidade em sentido estrito, próprios à pessoa física, com extensão aos nascituros.[1] Do ponto de vista jurídico, a condição de pessoa é uma criação do Direito no intento de determinar quem é o titular desses direitos subjetivos.[2] Essa discussão leva à essência dos inúmeros direitos - já aqui referidos - que despontam no mundo atual, advindos da tão fantástica quanto assustadora evolução da ciência. Isso acarreta uma reinterpretação dos valores condizentes àquele direito da personalidade do qual são provenientes todos os outros: o direito à vida.
[1] O juiz do Segundo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, Euclides de Oliveira estende ao nascituro a aplicação dos direitos da personalidade (OLIVEIRA, 1998, p. 30-31). Da mesma forma posiciona-se: ALMEIDA, 1983.
[2] “Cada vez que se ataca a pessoa, em qualquer de suas dimensões, se acaba por fortalecer os direitos da personalidade.” (LOS MOZOS, 1991, p. 113).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda de. Das pessoas juridicas: ensaio de uma theoria. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1905, p. 18.
ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu Chinelato e. Tutela civil do nascituro. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1983. 370 p.
ESPINOLA, Eduardo. Systema do direito civil brasileiro: introdução e parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, v. 1, 1917, p. 299.
LOS MOZOS, José Luis de. El concebido y su tutela jurídica: personalidad y derechos de la personalid: o status personal. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 10, p. 113, 1º trim. 1991.
OLIVEIRA, Euclides de. Indenização ao nascituro. Boletim Informativo da Legislação Brasileira, [Brasília], n. 172, p. 30-31, jan. 1998.
TRABUCCHI, A. Inseminazione artificiale: diritto civile. In: AZARA, Antonio, EULA, Ernesto. Novissimo digesto italiano. 3. ed. Torino: Stamperia Artistica Nazionale, t. VIII, p. 732-741, 1968.
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 28/01/2014