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O método dos juristas medievais
- direito como ordenação racional - direito como dogma -
Professora Sílvia M. L. Mota

Época medieval

A Idade Média é o período histórico da Europa que se estende do século V até o século XV, ou seja, da queda do Império Romano do Ocidente, em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Os dias desse milênio são inquietos, podendo-se destacar, a título de conhecimento, pelo menos dois momentos peculiares: a alta Idade Média, que vai da formação dos reinos germânicos, a partir do século V, até a consolidação do feudalismo, entre os séculos IX e XII; e a baixa Idade Média, que vai até o século XV, caracterizada pelo crescimento das cidades, a expansão territorial e o florescimento do comércio.

A Alta Idade Média é um período de desconstrução e construção. Por tal razão é rico de pormenores. Os homens desta época assistem à queda do mundo conhecido até então: o império romano, e, ao mesmo tempo, participam da construção de um novo mundo, agora tendo como elementos as culturas germânicas e a Igreja Católica.

O que é o direito medieval?

A Idade Média caracteriza-se por ser uma época de intolerância, de crueldade, de guerras e ódios, de perseguições e torturas, o que acaba por repercutir no campo jurídico.

Nesse período, vigora o direito constituído pelo Direito Romano, Direito Canônico e Direito Germânico.

O advento do cristianismo traz a separação fundamental entre as questões políticas e religiosas. A politicidade é “uma qualidade própria da vida pública”, que “distinguia o homem de muitos animais que tinham uma vida gregária e, nem por isso, uma vida pública.” A sociabilidade, por sua vez, “é vista como uma espécie de gregariedade e o que a distingue da mera gregariedade animal é a dignidade humana [...]” (FERRAZ JR., 1994, p. 62).

A lei é definida por Santo Tomás de Aquino como “[...] uma ordenação da razão direcionada ao bem comum, promulgada por aquele a quem incumbe o cuidado da comunidade (SummaTheologica, 1ª, 2ªe., q. 90, art. 4). Permanece a essência do Direito na esfera da sacralidade, embora diferente da apregoada pelos romanos. Esta, imanente (mítica, de fundação), aquela, de origem externa à vida humana na Terra.

O método dos juristas medievais

Enquanto para os romanos o Direito é um saber das coisas divinas e humanas, na Idade Média os saberes são distintos, ainda que guardem uma relação de subordinação (FERRAZ JR., 1994, p. 63). Surge, assim, no século XI, um novo saber jurisprudencial, que não abandona o pensamento romano, mas introduz uma nota diferente no pensamento jurídico da época: a dogmaticidade.

Nascem as universidades e com elas o ensino da teoria jurídica se faz através do Corpus Juris Civilis de Justiniano, o Decretum de Graciano, de 1140, além das fontes eclesiásticas que formam os cânones e, por fim, as coleções de decretos papais.

Os juristas europeus redescobrem os textos dos juristas romanos, aceitos como base indiscutível do Direito e o resultado dessas inovações é o nascimento de um direito europeu cujos postulados persistem até os dias atuais. Ao invés de se utilizar fundamentalmente dos recursos prudenciais, o jurista medieval excede na procura de “[...] princípios e regras capazes de reconstituir harmonicamente o corpus. Neste sentido, a prudência se faz dogmática.” (FERRAZ JR., 1994, p. 64).

À leitura dos textos romanos seguem-se asglozas ou glossários do mestre, originando a expressão glozadores, conferida aos juristas daquele tempo. As glozassão copiadas pelos estudantes entre as linhas do texto ou às margens do mesmo. Pouco a pouco essas glozasacumulam-se às doutrinas, chegando a alcançar a mesma autoridade do texto. Como exemplos, citam-se a Gloza Ordinária de Accursio (c.1182-c.1260).

A gloza supõe uma meticulosa análise, através do método dialético. Pode-se afirmar que a reformulação dos insuficientes e fragmentários textos clássicos é uma vitória dos juristas da época.

Os procedimentos mais utilizados pelos juristas para a construção da sistemática faz-se através da distinctio e a quaestio. Pela distinctio um conceito é sucessivamente dividido em várias espécies subordinadas, e, estas, em outras, até chegar a um último detalhe. As quaestiones servem para provar as doutrinas contidas nas glozas (TAMAYO Y SALMORÁN, 2002, p. XIV). O método dialético desenvolvido no início do século XII em jurisprudência (e teologia), pressupõe a autoridade de certos textos, os quais há de se entender como contendo um corpus (consistente e completo) da doutrina. Mas, paradoxalmente, este método leva a supor a existência de lacunas, assim como contradições no texto. Daí que o propósito final do método é fazer uma summa do texto integrando as lacunas e resolvendo as contradições. A ratio fundamental é a completude e a consistência (TAMAYO Y SALMORÁN, 1999, nota 3, p. 75-77).

Na jurisprudência, o método dialético adquire a forma de análise e síntese da massa da doutrina encontrada na codificação justinianeia. Esta circunstância permite aos juristas do século XII uma grande liberdade e flexibilidade (das quais nunca dispuseram seus antecessores romanos ou bizantinos).

O método dos juristas medievais transforma totalmente o método dialético da antiga filosofia grega e o modus geometricusda jurisprudência romana. O método dialético se distingue, sobre todas as coisas, pelo fato de que não começa por enunciados, mas sim por problemas ou quaestiones, ainda que, em última instância as quaestiones resultem em uma conclusão ou em forma de proposição ou princípio primeiro.

Os juristas medievais concebem o método dialético não somente como o método para chegar ao princípio primeiro (como um princípio indutivo), mas como um método de análises de argumentos e definições de conceitos, mediante a distinção e síntese de gênero e espécie. Desta maneira, a dialética se converte em uma disciplina independente, não essencialmente diferente da lógica, mas com poderosos elementos de retórica e gramática.

Os juristas medievais preocupam-se com a análise e a síntese dos materiais jurídicos, e não somente intentam organizar o sistema jurídico para encontrar decisões jurídicas apropriadas. Como estes textos são corretos, constituem maximæpropositiones, para, a partir deles, deduzir “novas consequências” jurídicas (BERMAN, 1983, nota 8, p. 139-143).

Os juristas não tratam, simplesmente, de apor teses contrárias. Ao contrário, assentam questões sobre passagens contraditórias de um texto jurídico. São as quaestionesdisputatæ. A idéiaé conjurar ou relacionar, para evoluir, todos os elementos relevantes em uma estrutura muito complexa que assemelha os alegados e argumentações próprias dos casos difíceis nos tribunais.

A expressão quaestionesdisputatæ é utilizada pelos glozadores e possuem como elemento essencial o pró e o contra de um problema para o qual existem, ou parecem existir, soluções contraditórias. Uma quaestio é, portanto, sempre dialética (TAMAYO Y SALMORÁN, 2002, p. XVI).

As quaestionesdisputatæ constituem-se no núcleo central de todo ensinamento das universidades medievais, ultrapassando o caráter meramente educacional e constituindo-se na única prática complementar às leituras.

A jurisprudência medieval constitui-se num ensino sem fronteiras, sendo ensinada nas universidades a estudantes provenientes de toda a Europa.

Outra característica da jurisprudência medieval é o seu status e peso social na formação do Direito, que deve ser encontrado, em primeira instância, nos clássicos textos. A partir daí é necessário dispor de uma classe de pessoas eruditas que possam interpretá-los, explicando-os àqueles que desejam penetrar nos seus mistérios. O doutor em Direito converteu-se em expositor da essência do que é dito pelo Direito. Os jurisconsultos conscientizam-se de que sua profissão é parte integral da vida intelectual da época.

Referências


BERMAN, Harold. Law and revolution: the formation of the western legal tradition. Cambridge: Harvard University Press, 1983.
 
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994.
 
TAMAYO Y SALMORÁN, Rolando. La ciencia del derecho y la formación del ideal político: estudio histórico de la dogmática jurídica e de su impacto em las ideas políticas. México: Huber, 1999.
 
TAMAYO Y SALMORÁN, Rolando. Prólogo?: la jurisprudencia medieval. In: MAGALLÓN IBARRA, Jorge Mario. El renacimiento medieval de la jurisprudencia romana. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2002. (Serie Doctrina Jurídica, 109). ISBN 970-32-0042-7.

 

Professora Sílvia M. L. Mota
Texto escrito em 2002

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 24/06/2012
Alterado em 01/08/2017
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