IGUALDADE CIVIL DA MULHER CASADA
NO DIREITO BRASILEIRO
- Sílvia Mota -
Síntese de Monografia apresentada ao Professor Jacob Dolinger
no Curso de Mestrado da UERJ em 1996. Nota: 10, com louvor.
Atualização do dados em 19 mar. 2012
A ortografia dos textos originais é mantida.
A mulher, alvo de verso e prosa, constituiu-se sempre, desde a mais remota Antiguidade, em objeto de acirradas discussões amorosas e sociais quanto jurídicas; e terá sido a primazia histórica da espoliação à cultura sobre a moral que a converteu, em diversas sociedades, no suceder da evolução da humanidade em escrava, objeto, criada do homem.
Esse desatino levou Aristóteles - aquele que Dante proclamou o mestre dos que sabem - a ver-se exposto a ser condenado à morte:
[...] acuzado, ha mais de 22 séculos (384-322 a.C.) por ter tributado à sua espoza as honras que érão devidas a Céres; e no seu testamento ele requereu que os réstos déssa espoza fôssem reünidos no seu sepulcro.
No início do século XX outras vozes, esquecidas nos meandros da História sobrelevam à sua maneira o valor da mulher, sustentando:
Não ha novidade alguma em similhante tema. Tambem não são nóvos, si bem que não sêjão tão antigos, os preconceitos revolucionários em sentido contrário, já afirmando a igualdade entre os dois séxos, já pretendendo sustentar a superioridade da Mulhér, não sob o ponto de vista em que éssa superioridade é incontestável, segundo os ensinos pozitivos, mas, por assim dizer, em qualquer terreno.
Apesar destas manifestações a teoria preconizava a superioridade do sexo masculino em relação ao sexo feminino. Isso se explica justamente porque o direito positivo ainda não abordara convenientemente o confronto entre os dois sexos, incitando o orgulho varonil e apoiando-se na preeminência afetiva da mulher que a fez aceitar com sacrifício e tributo, através dos tempos, o posto obscuro que lhe foi outorgado pelo homem em troca da liberdade de ser a zeladora do altruísmo humano.
Socialmente, a mulher brasileira, da mesma forma que as demais, ascendeu através de um caminho dificultoso, eivado de tradicionalismo e influenciado pelo genérico e absoluto senhorio do homem. Conquistou direitos, mas, por décadas, equiparada para específicos atos da vida civil aos incapazes, a plenitude de sua capacidade jurídica somente desvendou-se com o advento da Lei nº 4.121 de 1962 – o Estatuto da Mulher Casada.
Contudo, essa igualdade por demais reduzida manteve-se em desequilíbrio imperativo até a promulgação da Constituição Federal de 1988 que, através do art. 226, parágrafo 5º, preceitua serem os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
Posteriormente, o Código Civil de 2002 nasce para ratificar posições assumidas pela literatura jurídica e pelos tribunais nacionais e atualiza-se a partir da Lei nº 11.698, de 2008, que introduz no ordenamento jurídico nacional a guarda compartilhada.
Essa é a trajetória que se desvendar neste trabalho, a partir de documentos históricos, legislação, literatura e jurisprudência pertinentes à mulher casada nos domínios do Princípio da Igualdade.
Ordenações Portuguesas
A mulher reputada incapaz era um fato adequado à época das Ordenações e, portanto, não caracterizou motivo de desassossego aos legisladores quando regulamentaram a ligação entre os cônjuges. Numa evidente apologia às influências do direito romano, imperava o comando ofensivo do homem, eximido de pena quando castigasse servo, discípulo, sua mulher e seu filho (L. 5, T. XXXVI, § 1º).
Decreto nº 181 de 1890
O Decreto nº 181 de 1890, colocou fim à vileza especificada anteriormente, mas, embora não a tenha revelado textualmente incapaz, preservou a orientação geral das Ordenações.
Em 1894, Tito Livio de Castro discursa:
Pelo volume, peso e forma o cérebro feminino é inferior ao cérebro masculino [...] A mulher não tem mais coração que o homem, mas tem mais medula e menos cérebro; o seu typo passou por menor numero de modificações e adaptações que o do homem e por isso caracteriza-se por uma inferioridade mental [...] O cérebro feminino só espera o fermento da educação para evoluir.
Como se lê estas palavras exibem a realidade sociocultural enfrentada pela mulher em torno da sua capacidade, por ocasião das discussões que norteariam a germinação do Código Civil brasileiro de 1916.
Clovis Bevilaqua e Código Civil de 1916
O período que antecedeu a promulgação do Código Civil, controverso, motivou fraseados cruéis daqueles que se opunham à escolha de Clovis Bevilaqua para a observância de tão importante missão. Eis um trecho, legível, publicado em Jornal do Brasil da época:
No Brasil todos esses cuidados são desprezados, a empreitada do Cód. Civil foi encommendada a um amigo do ministro da justiça, que em poucos mezes preparou a obrinha. E, como nesta terra de cegos não ha mais ninguem competente para achar defeitos no trabalho do amigo do ministro da justiça, offensa seria consultar a Nação sobre a preciosidade que se lhe quer impingir, mesmo porque há muita pressa em aproveitar a monção, visto como o ministro da justiça tem urgencia em ficar celebre nos annaes da historia patria com a promulgação do Cod. Civil (ainda que este não seja grande cousa) e os horizontes politicos não andam muito claros.
E, continua:
É preciso não deixar escapar a maioria actual e fazer passar já e já a encommendada prebenda com rapidez analoga á da sua confecção. Qualquer demora poderá prejudicar o plano; e isto é que é o principal, soffram embora os interesses do Direito Patrio e a dignidade de um povo inteiro. C.M.
Os princípios de incapacidade civil da mulher extremados pelo Código Civil foram por demais contraditados, por exemplo, na Acta da 11ª Reunião da Commissão Revisora do Projecto de Código Civil, onde consta a diferença de opiniões sobre o § 2º do art. 6º do referido Projeto.
Discorria àquela época a favor da mulher, o deputado Solidônio Leite:
O projecto primitivo, sem incluir as mulheres casadas entre os incapazes, na parte geral, faz apenas referencias ás restricções constantes do livro 1º da parte especial, consistentes na necessidade de autorização do marido para o exercicio de certos direitos.
Continua o defensor femíneo:
Si taes restricções fossem bastantes para que se devesse incluir a mulher casada em o numero dos incapazes, de que se occupa o art. 6º, dever-se-hia incluir igualmente o marido, pois tambem este precisa do consentimento da mulher para certos actos (enumerados no art. 302 do projecto), sendo certo que tanto num caso como no outro a necessidade de autorisação, que póde ser supprida pelo juiz, constitue méra limitação de direitos de cada um dos conjuges, estabelecida a bem dos interesses da sociedade conjugal.
E permanece a sua defesa:
Em muitos outros casos se encontram limitações semelhantes, que não constituem verdadeiro a incapacidade, ao menos com o caracter de generalidade, sufficiente para que deva ser destacada na parte geral do Codigo. Vota, portanto, contra a disposição do projecto, julgando preferivel o disposto no art. 6º do projecto primitivo.
Coloca-se, então, Bulhões de Carvalho:
Quanto ás restricções da capacidade do marido, não convencem as ponderações que acabam de ser feitas, porquanto o marido é quem representa o casal nas relações do direito, precisando apenas da outorga da mulher para a alienação de certos bens. Quanto ao mais, parece-lhe haver apenas uma questão de palavras, pois que o Dr. Solidonio, de accôrdo com o art. 6º do projecto Bevilaqua, chama restricções da capacidade da mulher casada o que, de accôrdo com o projecto revisto, chamamos incapacidade relativa. Essa incapacidade de direito, como explicam os civilistas, não é sinão a incapacidade de exercer por si, directamente, os direitos, excluindo a necessidade de um representante, que é, em relação á mulher casada, o seu marido. Sr. Presidente designou a nova reunião para o dia 27/07/1901.
Tal se vê, não transitou despercebido de todos os legisladores a injustiça de ser cominada à mulher a relativa incapacidade civil, embora tenha a indicação evolucionado ao sabor da perniciosa aquiescência do presidente Dr. Bulhões de Carvalho, sem a chance dos argumentos, como sugeria o discurso inicial.
Ainda no período precedente ao Código, exalta-se a importância do Decreto nº 1839, de 31 de dezembro de 1907, conhecido como a Lei Feliciano Penna, que mitigou o destino da mulher dentro do Direito das Sucessões. Valorou o cônjuge sobrevivente na ordem da evocação hereditária, onde passou a herdar antes dos colaterais, possibilitando clausular a legítima do herdeiro necessário, preceito do qual se originou a regra do artigo 1.723 do Código Civil de 1916 que permitia ao testador "[...] determinar a conversão dos bens da legítima em outras espécies, prescrever-lhe a incomunicabilidade, confiá-los à livre administração da mulher herdeira [...]"
Finalmente, exsurge o Código de 1916, numa tentativa de ordenar o direito civil brasileiro, que àquela época não passava de um aglomerado variável de leis, assentos, alvarás, resoluções e regulamentos. Supre, repara e ampara as Ordenações do Reino: "[...] venerável monumento antiquado, poido pela acção de uma longa jurisprudencia inculta e incerta, cujos sacerdotes lhe recitavam em torno os textos frios do Digesto [...]"
Vergou-se o Código à ascendência do arbítrio marital, estremando os direitos da mulher casada, ao dedicar-se às pessoas naturais e dispor no art. 6º serem as mulheres casadas incapazes, relativamente, a certos atos ou à maneira de os exercer, enquanto persistir a sociedade conjugal.
Clovis Bevilaqua fez questão de alegar que, primitivamente, tal disposição não fora da sua autoria, responsabilizando a Comissão Revisora, de tê-la incluído sem discussões. Eis suas palavras:
Realmente a mulher possue capacidade mental equivalente á do homem, e merece egual protecção do direito. Já é um sacrificio á justiça submettel-a á autoridade do marido, pela necessidade de harmonizar as relações da vida conjugal. Revoltante seria, em nossa época, cercear-lhe direitos civis, com fundamento de uma falsa doutrina sobre o valor psychico do sexo feminino. Não é a inferioridade mental a base da restricção imposta á capacidade da mulher, na vida conjugal, é a diversidade das funcções que os consortes são chamados a exercer [...] A família é uma sociedade de que o marido é o chefe, mas, na qual, a mulher é chamada a funcções tão nobres e elevadas, que o direito não pode mais ferreteal-a com o estigma da incapacidade.
Eximia-se, assim, da responsabilidade da sagração da incapacidade civil da mulher casada no diploma civil brasileiro.
Jurisprudência dos Tribunais brasileiros
A jurisprudência brasileira seguiu os ditames do Código, exigindo a outorga marital para que a mulher casada pudesse cumprir determinados atos civis.
O acórdão da Segunda Câmara da Côrte de Apelação do Rio de Janeiro, em 1906, entendeu que a mulher viúva na posse de sua plena capacidade jurídica, não a perderia, pelo fato de ter-se casado novamente, podendo exercer a função de inventariante, desde que autorizada pelo seu segundo marido.
Poucos anos depois, em 1914, verifica-se que no direito estrangeiro as decisões não passavam ao largo daquelas emitidas pelos tribunais brasileiros, pois que uma decisão da Câmara Civil do Tribunal do Sena, autorizou uma mulher casada a praticar, sem autorização particular, todos os atos relativos à administração provisória dos bens e negócios de seu marido, mas isto porque este se encontrava internado num hospício de alienados.
A regra da incapacidade desfez-se, entretanto, num caso de separação de corpos, ao decidir a Segunda Câmara da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, em 1922, que a mulher naquela situação, poderia, mesmo sem autorização judicial, falar nos autos do inventário do seu falecido pai. Dessa forma, conclui-se que, com a simples separação de fato, teria ela recuperado a plena capacidade civil e processual.
Na década de trinta, a mesma Corte de Appelação afirma ser princípio dominante no direito pátrio que a mulher:
[...] em virtude do casamento e pela constituição do poder marital, é ferida de uma dupla incapacidade e assim, de regra, não póde praticar validamente actos que tenham por fim gerar ou extinguir direitos ou obrigações.
A relativa incapacidade da mulher, cultuada pelo direito brasileiro, poderia, entretanto, ser ilidida pelo consentimento do marido, através de instrumento público ou particular, previamente autenticado, como indica a decisão do Tribunal da Relação de Belo Horizonte, em 1931.
Antonio Covello – precursor da igualdade entre os cônjuges
Contra as disposições vitoriosas do Código Civil brasileiro, nos idos de 1934, levanta-se Antonio Covello, como precursor da igualdade entre os cônjuges, alegando em sessão da Câmara dos Deputados:
[...] cumpre reparar a injustiça das desigualdades que se referem aos direitos dos cônjuges. As modernas condições de vida vieram pôr em evidência a plena capacidade da mulher, em todas as manifestações da atividade humana. Seria inutil tentar reduzir a importancia das conquistas sociais por ela realizadas, numa constante e crescente afirmação do seu valor mental e moral e das suas aptidões para o cumprimento de todos os encargos e deveres compatíveis com o sexo e impostas pela sociedade. Daí uma consequência: a equiparação dos direitos e deveres dos cônjuges, suprimindo-se as restrições de ordem jurídica que têm mantido a mulher numa situação de dependência ante a autoridade do chefe do casal. A influência clássica do romantismo no direito, vai, nêste como em outros pontos, dia a dia perdendo terreno. Não subsistem mais motivos que aconselham a manutenção do regime, segundo o qual o matrimônio passa a ser para a mulher um fator de redução de capacidade jurídica. A sociedade conjugal oriunda do casamento, deve ter por base a igualdade dos direitos e dos deveres das partes contratantes.
Lino de Morais Leme advertiu que não bastaria eliminar do Código Civil a disposição que declarava a mulher casada como relativamente incapaz, pois, se subsistissem as restrições injustificáveis glorificadas em alguns artigos, a situação seria a mesma.
Contudo, independentemente da voz defensiva de alguns, a capacidade civil da mulher casada quedou-se lesada por muitas décadas, sendo apenas situada no mesmo plano da capacidade do homem, quando houvesse impedimento deste para contrair quaisquer obrigações e desde que fosse no interesse do casal.
As propostas para modificação do Código permaneciam cristalizadas na mente dos legisladores que inadmitiam concessões à plena integração da mulher na sociedade jurídica, constrangendo-a à dependência da outorga marital para cumprir atos de sua vida civil.
Estatuto da Mulher Casada: Lei nº 4.121 de 27 de agosto de 1962
Tão somente em 27 de agosto de 1962, com o advento da Lei nº 4.121, denominada Estatuto da Mulher Casada, delinearam-se novos horizontes, que vieram conceder à mulher casada a plena capacidade de agir.
Arnold Wald chamou-a de "famigerada Lei". Segundo o autor, as lacunas e falhas técnicas criaram um estado de insegurança jurídica, por suscitar a necessidade de se modificar o sistema de maneira global, dando clareza às novas normas:
[...] sob pena de torná-las absolutamente ineficazes, pois, na hipótese de contradição entre as diversas regras legais vigentes, é sempre a tradição que domina e se consagra vencedora contra as inovações legislativas.
Independentemente das críticas, a nova Lei sugeriu decisões favoráveis à mulher, provenientes do Supremo Tribunal Federal, que passou a lhe conceder plena capacidade para estar em juízo, sem outorga marital.
Vencida, pois, a sagração da incapacidade jurídica, permanece agora o preconceito contra a igualdade no casamento, princípio arraigado ao direito brasileiro, mas que, atendendo ao apelo da sociedade, diante das novas vicissitudes, vinha sendo burlado pelos tribunais nacionais, como se vê em decisão do Supremo Tribunal Federal, em 1977, a qual indicava que, o poder doméstico da mulher poderia ser exercitado sem autorização do marido, por ser assim presumido.
Projeto do Novo Código Civil e outras conquistas
Em 1975, o Projeto do Novo Código Civil (634-B) introduzira várias modificações no sistema jurídico brasileiro, mas sem extinguir a chefia da sociedade conjugal. Em caso de discordância, valora a autoridade marital e ressalva à mulher a faculdade de recorrer ao judiciário, desde que não se trate de matéria personalíssima (art. 1.569, caput e § único).
Ao aspirar por novas conquistas, as mulheres brasileiras deixaram-se, em novembro de 1981, representar por Sílvia Pimentel e Florisa Verucci, que pessoalmente foram à Brasília entregar ao Presidente do Congresso, Senador Jarbas Passarinho, o Projeto do Novo Estatuto Civil da Mulher. Em março de 1982, a Deputada Cristina Tavares (PMDB de Pernambuco) apresentou a proposta à Câmara Federal, em forma de Projeto de Lei, sob o nº 6.023/1982. Repetiu-se o ato no Senado, através da Senadora Laélia Alcântara (PMDB do Acre).
Ao tomar conhecimento da inovação, o Deputado Ernani Sátiro (PDS da Paraíba), Relator-Geral do Novo Código Civil - à época em andamento - reconheceu-a conveniente às expectativas civis contemporâneas e, desta forma, integraram-se determinadas sub-emendas no Relatório Geral, na parte referente ao Livro da Família, provenientes do referido Projeto.
No afã de conseguir o máximo para a mulher brasileira, Sílvia Pimentel e Florisa Verucci decidiram obter a completa integração de suas propostas no Projeto do Código. Sua vitória estampou-se na ata da última reunião da Comissão Especial do Código certificando a aceitação das emendas complementares então apresentadas.
Eis as ideias principais do Anteprojeto do Novo Estatuto Civil da Mulher Casada:
Fica revogado o instituto da chefia da sociedade conjugal, assumindo a mulher as mesmas atribuições do marido com relação aos bens do casal e dos filhos menores e a ampla liberdade para a escolha do nome de família, ficando ao seu arbítrio adotar ou não o nome da família do marido, direito estendido ao homem, que poderá também adotar o nome da família da mulher.
O pátrio poder passa a ser denominado autoridade parental, e os termos função e responsabilidade passam a substituir a posse e o poder.
Supressão do erro essencial de pessoa (arts. 178 e 219) e a filha desonesta (art. 1.744, III), já referidos pelo Projeto.
Supressão do instituto do regime dotal de bens, que, pelo desuso, fora revogado no Projeto.
Acrescenta-se aos deveres do casamento o respeito e consideração mútuos.
Mais um passo em direção ao reconhecimento da igualdade civil da mulher brasileira.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
Em 1988, alcança-se absoluta igualdade, através do dispositivo constitucional (art. 226, § 5º), que preceitua serem os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
O Presidente da República do Brasil sancionou e mandou publicar no Diário Oficial da União no dia 10 de janeiro de 2002 a Lei nº 10.406, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, após o prazo de um ano da vacatio legis o que vem a ser o novo ordenamento jurídico civil nacional.
Sob muitos aspectos pode-se afirmar que o novo Código Civil era aplicado pelos Tribunais nacionais em razão da CRFB/1988, o que manteve as relações civis protegidas de modo atualizado e consentâneo.
Embora todas as Constituições nacionais reconheçam o princípio de que a lei é igual para todos, a legislação ordinária estabeleceu regras marcadas pela desigualdade entre os cônjuges. E mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1.988 as disparidades eram detectadas, o que criou perplexidades e alterações constantes sobre a auto aplicabilidade do Princípio Constitucional da Isonomia.
Busca-se respaldo em José Afonso da Silva, quando afirma que as constituições anteriores somente conheciam a igualdade jurídico formal, mas com a Constituição de 1988 o direito à igualdade se fortaleceu, em especial, a igualdade entre homens e mulheres.
Código Civil de 2002 (NCC/2002)
O NCC/2002, em seu art. 1º expõe que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Perceba-se a expressão “toda pessoa” na acepção de todo ser humano. Portanto, substitui-se a palavra homem por pessoa, e assim, sucessivamente, em todo o Código, para que se extermine qualquer tipo de ranço do passado, em relação à vantagem masculina.
O art. 1.511 expõe que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
A adoção do Princípio da Igualdade atende ao anseio de igualdade ostentado pelas mulheres no que se refere às decisões referentes à sociedade conjugal, pois estas serão tomadas de comum acordo entre marido e mulher.
O art. 1.565 do NCC/2002 dignifica o casal quando determina que pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
O artigo 240 do Código Civil de 1916, com redação da Lei nº 6.515/1977, exarava que a mulher com o casamento passaria a ser companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta. Desta forma, a esposa passou a ter a condição de sócia e não de submissa ao marido. Esta regra permanece no NCC/2002, ao equiparar os direitos e deveres dos cônjuges.
A responsabilidade do casal em condições de igualdade é ratificada no art. 1.568 do NCC/2002, quando expõe que os cônjuges têm a obrigação de contribuir na proporção de seus bens e do rendimento ou produto do trabalho para o sustento da família e educação da prole.
Retornemos ao art. 1.565 do NCC/2002, que enverga no seu parágrafo 1º, com galhardia, que qualquer dos cônjuges poderá acrescer ao seu nome o sobrenome do outro, o que contempla mais uma vez o Princípio da Isonomia, quando oferece os mesmos direitos aos cônjuges. Tanto o homem pode adotar o sobrenome da mulher, quanto a mulher acrescer ao seu o sobrenome do marido.
No concernente à utilização do sobrenome pelo casal, coloca-se o aparte vislumbrado no art. 1.578 do NCC/2002, pois o cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente. Expõe ainda que o cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro. Nos demais casos, caberá a opção pela conservação do nome de casado.
Permanece, pois, a culpa, como restrição ao direito assegurado no dispositivo anteriormente citado. É preciso o estabelecimento de uma causa imputável a um dos cônjuges pelo término do casamento. Em consequência, o cônjuge culpado perde o direito de utilizar o sobrenome do outro cônjuge, se for requerido pelo cônjuge “inocente”. No entanto, mesmo sob o ferimento da culpa, algumas exceções se fazem necessárias, como indicam os incisos I, II e III do dispositivo legal em estudo: evidente prejuízo para a sua identificação; manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; dano grave reconhecido na decisão judicial.
O parágrafo 2º do art. 1.565 do NCC/2002 dispõe que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.
Perceba-se sempre a afirmativa “do casal”, retirando a prevalência de uma vontade sobre a do outro.
No que pertine aos viúvos, não há dispositivo na lei que trate especificamente deste assunto. Infere-se do disposto que, com base nos direitos de personalidade, cabe somente aos viúvos decidirem se querem ou não manter o sobrenome dos companheiros mortos. A literatura jurídica e a jurisprudência admitem a mutabilidade.
Da letra do art. 1.567 lê-se que a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos. E prossegue no parágrafo único a determinar que no caso de divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.
Extirpa-se, em definitivo, a ideia de chefe de família, inadmissível nos dias atuais. O NCC/2002 outorga à esposa o direito de decidir conjuntamente com o marido sobre as questões essenciais. Substitui, portanto, o poder decisório do marido pela autoridade conjunta dos cônjuges. Assim, conflagra-se a isonomia conjugal tanto nos direitos e deveres do marido e da mulher, como no exercício daqueles direitos.
A grande modificação que se apresenta no NCC/2002 diz respeito à guarda dos filhos, que por si, modifica-se a partir da inovadora e polêmica Lei nº 11.698, de 2008, que introduz no direito brasileiro a guarda compartilhada.
O art. 1.583 estabelece que a guarda será unilateral ou compartilhada. Portanto, permite-se a escolha do tipo da guarda, sempre observados os interesses do menor.
O parágrafo 1º do art. 1.583 é definidor, pois se compreende por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
O parágrafo 2º do art. 1.583 ordena que a guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; saúde e segurança; e educação.
O parágrafo 3º do artigo em comento dispõe que a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.
O art. 1.584, também com redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008, delimita em que situações serão concedidas a guarda unilateral ou compartilhada. Sendo assim, poderão ser requeridas: por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; poderão ser decretadas pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou ainda em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento das suas cláusulas.
Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.
Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar.
A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho.
Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.
O art. 1.585 determina que em sede de medida cautelar de separação de corpos, aplicam-se quanto à guarda dos filhos as disposições do artigo antecedente.
Em matéria de estrita proteção aos filhos, estabelece o art. 1.586, que havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais.
O art. 1.588 determina que tanto o pai quanto a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que o tratamento que lhes é oferecido não é conveniente.
O art. 1.589 dispõe que o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
Para bem coroar as mudanças do NCC/2002, evidencia-se o artigo 1.630, a partir do qual os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
Substitui-se a antiga expressão “pátrio poder” por “poder familiar”. Os pais têm esse poder em função dos interesses do casal e da prole e o exercem em igualdade de condições. Portanto, o poder que os pais exercem sobre seus filhos procede daquele dever, que lhes é imposto, de cuidar de sua descendência durante a condição, em processo de desenvolvimento, da infância.
Observação Final
O alcance da igualdade desperta ainda hoje intransigentes celeumas. Muitas opiniões encerram a pretensão de restringir o âmbito da igualdade, sempre em detrimento da mulher. Contudo, essa conquista torna-se inexpugnável, por haver sido delineada, através do século, pelo caráter irrepreensível de homens que ergueram sua voz, colocando-a em defesa da bravura e determinação das mulheres, pela criação de uma sociedade conjugal mais digna, onde predomine o amor, o respeito e a compreensão.
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