Sexta-feira treze de agosto
Ao acordar, percebi-o sentado na cama, aos meus pés. Aparência enternecedora e bela, pela estrutura corpórea imaginei-o bem alto, além do que me sorria com a alvura de todas as nuvens juntas. Esfreguei os olhos, ainda sonolentos...
Entre assustada e surpresa, senti-me observada por um belíssimo jovem de estatura alta e olhos azuis, que usava calça branca caída à cintura, sem o uso de cinto ou meias; o que me fez relembrar alguma coisa agradável da infância, mas não saberia dizer o que. De repente, busquei o homem belo e não mais o encontrei, mas, permaneciam dois espectros idosos, a entoarem uma canção silenciosa, que me ofereceu ternura e segurança. Sorri levemente e abaixei os olhos...
Após o momentâneo enlevo, percebi que várias cabeças de uma pequena criatura se emaranhavam à minha procura. Quatro delas erguiam-se com galhardia – a primeira, semelhante a um príncipe encantado, fez-me sentir princesa inocente; a segunda, embora muito feia, provocou-me de forma intensa, charmosa e sedutora; a terceira cabeça exibiu-se sob os traços de um anjo, mas, não me atraíram as suas qualidades estéticas, nem me comoveu a sua tristeza; finalmente, a quarta cabeça acovardava-se atrás do pescoço único, como se fugisse do meu olhar. As demais, sucumbiram à escuridão do quarto. Aos poucos, desapareceram todas, como desaparecem todas as ilusões...
Foi então, que um jovem mais para gordo do que magro, cor amorenada e olhos rasgados, sorriu-me aliciador. Das suas mãos, um fio de sangue castiço escorria para dentro de uma ânfora de ouro cravejada de brilhantes e rubis, que se encontrava aos seus pés. Duas esmeraldas brilharam com intensidade, mas, embora fosse tudo meio encantado, não me senti bem ao grito de dor incontido que me retalhou o pensamento.
O desolador evento substituiu-se por figura mitológica - um homem-ave - que, após entrada alegre e triunfante, logo saiu aos prantos pela porta afora, intimidado pela presença de um jovem de baixa estatura e sorriso gostoso e atraente. Esse, por sua vez, mal ingressou no ambiente, foi preso a um alçapão e saiu carregado violentamente. Tentei resgatá-lo, mas, ao sentir-me ameaçada pelo mesmo perigo, dor pontiaguda atravessou-me as costelas.
Antes que chorasse em desespero, o homem-ave retornou para me consolar a tristeza e assim permaneceu, por algum tempo, a alisar-me os cabelos. De repente, alucinado por um bando de belas e sedutoras aves que cortavam o céu, fugiu de forma insensata pela janela, após abandonar três ovos dourados ao lado do meu travesseiro. Fez-se um raio de luz eterno!
Exausta, olhei para o lado e percebi um jovem pintor a retratar-me em tela branca e perfumada. As tintas desciam-lhe diretamente do céu pelo bico de passarinhos, mas, a paixão que ardia em cada pincelada, confundia-se aos sentimentos indecisos daquela masculinidade que não se permitia atrair pelo fêmeo.
Antes que o sofrimento se estabelecesse, arrebatou-me a presença máscula de um ente muito belo, amadurecido pela idade, envolto em luz azul que ofuscava os meus olhos. Tal êxtase causou-me a suave impressão de que jamais olvidaria a excitação daquele brilho. Por demais etérea, desintegrou-se a visão, e, a partir dos seus inúmeros pedaços, surgiu em nuvem muito branca e linda um atraente jovem com tímida feição. Envolvi-me de forma incontrolável, mas, sob amarga surpresa, um cheiro fétido de lodo contaminou o local. Alguns minutos se passaram até que, da matéria ainda espalhada pelo chão, brotou imagem mais alta e mais forte e bem mais jovem. Os espectros entreolharam-se com animosidade e a pujança daquele instante refletiu-se na minha alma. Almejei que um deles desaparecesse, contudo, não saberia escolher qual. Aos meandros dessa incerteza, não consegui detectar detalhes negativos em nenhum dos dois, a não ser em mim mesma. Via-lhes tão somente a luz, nunca a escuridão na qual me envolviam. A eternidade fez-se inteira naquele momento e angústia atroz invadiu o meu espírito. Por mais que os expulsasse do quarto, não se desgrudavam da minha pele, causando-me dilacerante dor no peito. Quase impotente ao ataque repentino, foi-me necessário ajeitar meu Odyuzu entre os dedos, unir as mãos em oração e entoar um mantra tão suave quanto enérgico. Somente assim, quase ao mesmo tempo, saíram em fuga pela janela os dois angustiados seres, não sem antes deixarem, cada um, sua indelével marca no meu destino. Com o meu próprio batom exposto à cabeceira, o mais jovem gravou-me na mente a desconfiança eterna, enquanto o outro furtou do recinto um pedaço do tempo para tatuá-lo na minha perna direita sob a forma de marca roxa e dorida. Após a negritude imposta, tudo ficou claro e em paz, conquanto vazio...
Foi a esse embalo que um som musical tomou conta do ambiente, enquanto imagem sedutora levitava sobre a cama a encantar-me. A Poesia apoderou-se do meu pensamento, esvaindo-se através da escrita. Não sei por quanto tempo permaneci a escrever, mas, incontida ansiedade invadiu-me por inteiro. Ao instinto de sobrevivência, afastei a imagem do meu foco de visão. Não o fizesse, a perderia pelo coração ainda entregue à saudade. Percebi sua compreensão, conquanto nostálgica, mantendo-se à espreita, sempre atrativa e esperançosa. Não me incomodou a constante presença, porque mal não me fazia; ao contrário, provocou-me olhares ao espelho para conferir a beleza.
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Que acordar confuso aquele! Cansada de vultos e lembranças, fechei os olhos. Adormeceria novamente? Estirei os braços a espreguiçar-me e percebi a presença do trio de ovos dourados ao meu lado. Precisaria cuidá-los, quiçá para sempre. Cobri-os com o meu olhar e o mais puro dos sentimentos. Lânguida, busquei o celular, para situar-me no tempo. Eram 13 horas do dia 13 de agosto – sexta-feira, de um ano exorcizado. Sorri aliviada. Fora tão somente homenageada pelos meus queridos fantasmas do passado.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2010 - 15h10
Reeditado em 14 de setembro de 2019 - 03h51
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 19/10/2010
Alterado em 14/09/2019