Os antecedentes
O Juramento Hipocrático, marco histórico da medicina, foi estabelecido na Grécia, no início da era cristã, pela Escola de Cós e, ainda hoje, representa o compromisso formal do médico para com a sociedade.
Outras culturas possuem documentos com importantes pontos de contato com o conteúdo do juramento hipocrático. Pode-se citar o chamado Juramento de Iniciação, Caraka Sambita, do século I a.C., procedente da Índia; o Juramento de Asaph, dentro do mundo judeu, provavelmente do século III-IV d.C., e o Conselho de um Médico, do século X d.C., procedente da medicina árabe. Dentro da cultura chinesa, Os Cinco Mandamentos e as Dez Exigências, de Chen Shih-Kung, médico chinês do começo do século XVII, que constitui a melhor síntese de ética médica dessa cultura.[1]
Esses documentos possuem quatro pontos coincidentes: em primeiro lugar, o primum non nocere - antes de tudo, não causar dano; a afirmação da santidade da vida; a necessidade de que o médico alivie o sofrimento e, finalmente, a santidade da relação entre o médico e o enfermo, que se reflete, sobretudo, no fato de que o médico não pode revelar os segredos conhecidos em sua relação com o enfermo nem se aproveitar sexualmente dele.
A obra Medical Ethics (Ética Médica) de Thomas Percival, no início do século XIX, tornou-o conhecido como o pai da ética médica. Este trabalho nasce como resposta a uma situação em que as tensões entre os médicos, especialmente por motivos de competência profissional eram muito intensas. Ainda nesse período, as primeiras associações ou colégios médicos em diversos países sobrelevam os interesses pelos aspectos éticos da medicina. Da mesma forma, surgem os primeiros códigos deontológicos, que sintetizam desde os valores inspirados pela ética hipocrática até às obrigações que devem ser observadas pelos médicos.
Os abusos na experimentação em seres humanos, o surgimento das novas tecnologias impondo questões inéditas e as percepções da insuficiência dos referenciais éticos tradicionais foram considerados e analisados em colóquios internacionais consagrados aos direitos humanos, às ameaças, aos danos submetidos ou às possíveis proteções.
Cita-se o exemplo da época nazista como um ponto crítico na história, que levou 23 médicos alemães a sentarem-se no banco dos réus do Tribunal de Nuremberg (1947), sendo que 16 foram declarados culpados e sete condenados à morte. Por resultado desse julgamento veio à luz o Código de Nuremberg[2], declaração com dez pontos específicos sobre o que seria lícito em procedimento de pesquisa médica, que inclui o consentimento voluntário e informado, a capacidade das pessoas para o referido consentimento, os benefícios decorrentes para a sociedade e o desenvolvimento da pesquisa de forma a evitar o sofrimento das pessoas envolvidas. O Tribunal de Nuremberg permanece na consciência coletiva, como um marco das ocorrências vergonhosas e inaceitáveis para a história da humanidade, ocorridas na Segunda Grande Guerra Mundial, referência indispensável para a compreensão da ética biomédica contemporânea.
A partir de então, nasceram diversas declarações, como consequências importantes das crises que assolaram o mundo, motivadas pelo desígnio comum de proteção da pessoa em risco e que incidiram essencialmente sobre as condições éticas da experimentação humana.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, é testemunho de uma nova mentalidade e conduz ao estabelecimento de necessária consciência individual e coletiva no que diz respeito ao valor do ser humano e às condições indispensáveis para o seu desenvolvimento.
Também, em 1948, a Declaração de Genebra, anunciada na 1ª Assembleia da Associação Médica Mundial, significa a atualização da ética hipocrática após as brutalidades detectadas na II Grande Guerra Mundial.
Em 1949, na Segunda Assembleia Mundial, adotou-se um Código Internacional de Ética Médica, inspirado na Declaração de Genebra e nos códigos deontológicos de inúmeros países.
A Declaração de Helsinque, primeiramente apresentada em 1964, pela Associação Médica Mundial, sofreu várias revisões, tendo sido a última em 1984. Refere-se também à elaboração de Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa envolvendo Seres Humanos pelo CIOMS e com a colaboração da OMS, em 1993. A Declaração encontra-se na sétima versão.[3]
Declarações outras surgiram, cada vez mais específicas, sobre a prestação dos cuidados na saúde. Entre essas, destaca-se a Declaração dos Direitos dos Deficientes Mentais, de 1971 e a Declaração dos Direitos dos Limitados Físicos, de 1975 – ambas aprovadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Relevante destacar a Declaração sobre a Eutanásia, documento religioso elaborado pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, nos idos de 1980, a Declaração sobre os Direitos do Doente ou “Declaração de Lisboa”, elaborada pela Associação Médica Mundial em 1981, que se fez acompanhar da Declaração de Veneza, relativa aos pacientes terminais e adotada pela 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em outubro de 1983 e a Declaração de Madrid, sobre a Eutanásia, adotada a partir de 1987.
A discussão bioética
Entre os biólogos que deram início à reflexão no terreno da bioética erguem-se os nomes de Willard Cayling e Daniel Gallahan, criadores do Hastings Center (Institute Of Society, Ethics and the Life Sciences), e André Hellegers, que fundou o Kennedy Institute (The Joseph and Rose Kennedy Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics) na Universidade de Georgetown e propalou o termo bioethics com a intenção de aplicá-lo à ética da medicina e ciências biológicas.
No Hastings Center, em 1969, pretendia-se averiguar o que a sociedade deveria fazer em relação às profissões em particular, frente à transformação ditada pelos notáveis progressos das ciências biomédicas. O Kennedy Institute, criado em 1971, em Washington, objetivou no seu Centro de Bioética, o estudo dos problemas relacionados aos recém-nascidos com graves anomalias genéticas, experimentação humana, transplantes de órgãos, manipulação genética, controle de conduta, aborto, direito à vida, à morte, moribundos e outros. Em 1982, sob o apoio da Federação Internacional das Universidades Católicas, criou-se no Kennedy Institute um grupo internacional de estudos de investigação interdisciplinar das ciências biomédicas, da psicologia e da teologia, com o objetivo de enfrentar o desafio originado do rápido desenvolvimento dos conhecimentos da biologia e medicina e seu impacto sobre o pensamento do Homem em relação a si mesmo e ao seu futuro.
A reunião de Asilomar ocorrida em 1975, assume posição ímpar na história da bioética, pois, pela primeira vez em público, os homens da ciência tomavam conhecimento do seu poder e das consequências do mesmo, esforçando-se: “[...] por medir esses poderes, por medir essas consequências, por fortificar as consequências felizes e por limitar as consequências perigosas.”[4] Em 1977, percebe Robert Mallet - um grande poeta - a importância da revolução científica, e compreendendo a gravidade e a novidade dos problemas concernentes ao homem e também o seu caráter mutável, funda em Sorbone o Movimento Universal da Responsabilidade Científica, com a preocupação de analisar as novas indagações.[5]
Sucedem-se ainda os balbucios, as tomadas de consciência, que levam a bioética a tornar-se um domínio importante da reflexão humana. Adotam-se formas diversas em vários países, inclusive no Brasil[6], através de comissões de ética, associações, colóquios ou congressos, mas torna-se necessário observar, antes de tudo, a aplicação dos princípios fundamentais que nortearão as novas circunstâncias.
Notas
[1] GAFO FERNÁNDEZ, 1997. p. 12.
[2] TRIALS... 1949, v. 10, n. 2, p. 181-182.
[3] WORLD..., 2016.
[4] idem.
[5] BERNARD, 1990, p. 25.
[6] Existem diversas iniciativas florescentes de bioética, em instituições públicas ou privadas em diferentes pontos do país, entre eles: Sociedade Brasileira de Bioética - SBB; Conselho Federal de Medicina, Brasília; Núcleo Interinstitucional de Bioética, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Hospital de Clínicas de Porto Alegre - UFRGS/HCPA; Núcleo de Estudos de Bioética da Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre; Instituto Oscar Freire, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Núcleo de Estudos em Bioética, Universidade de Brasília; Alfonsianum, São Paulo; Centro Universitário São Camilo, São Paulo; Rede de Informação sobre Bioética, Belo Horizonte; Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ. (BIOÉTICA..., 1998, p. 188-189).
Referências
BERNARD, Jean. Da biologia à ética: novos poderes da ciência, novos deveres do homem... 104268/5671 ed. Tradução por Cristina Albuquerque. Mira-Sintra: Europam, 1990. 263 p. (Estudos e documentos, 268). Tradução de: De la biologie à l’éthique.
BIOÉTICA no Brasil. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 22, n. 3, 188-189, maio/jun. 1998.
GAFO FERNÁNDEZ, Javier. 10 palabras clave en bioetica. 3. ed. actual. Navarra: Verbo Divino, 1997. 385 p. (Colección 10 palavras clave en/sobre, 4).
PERCIVAL, Thomas. Medical ethics: or, a code of institutes and precepts a dapted to the professional conduct of phsysicians and surgeons. London: J. Johnson & R. Bickerstaff, 1803.
TRIALS of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law 1949, v. 10, n. 2, p. 181-182. Library of Congress: federal research division: military legal resources, USA.gov. Disponível em: https://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/NTs_war-criminals.html. Acesso em: 4 out. 2016.
WORLD MEDICAL ASSOCIATION DECLARATION OF HELSINKI: Ethical Principles for Medical Research Involving Human Subjects. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin7.pdf. Acesso em: 4 out. 2016.