Textos


O jardim e a poeta
Episódio nº 3:
As grades que te encarceram, libertam-me!
 
Manhã de sol bonito. Lagoa brilhante. E eu, que ansiava pelo meu jardim! Com esse pensamento, desci as escadas correndo! Poetrix espantado pela minha energia, por ver-me a sorrir novamente, saiu à frente folgazão. Carecia de sol, urgente! Melhor dizendo, necessitava u-r-g-e-n-t-e-m-e-n-t-e sorrir!!!

- “Vem minha querida! Vem brincar comigo! Aqui fora está bem fresquinho!”
 
Que voz grossa! Não era minha Rosa querida...
 
- “Vem... o sol está uma delícia, do jeitinho que tanto gostas!”
 
Como?!! Uau!!! Poetrix falava comigo? Não podia ser! Estaria com a razão frouxa?
 
Aflita e desconfiada dos próprios ouvidos perguntei: - “Poetrix! Podes falar?!!!”
 
Meu cão, feliz, corria de um lado para o outro, saltando atrás dos besouros, pelo quintal!
 
- “Claro que posso falar contigo... não me estás a ouvir?” respondeu-me, carinhoso, esfregando-se pelas minhas pernas.
 
- “Meu amor, que maravilha! Saberei todos os teus desejos, o que pensas de mim e tantas coisas mais! Por que não falaste comigo antes?”
 
- “Porque tudo tem o seu tempo certo, minha querida mamãe... Ops! posso chamar-te assim?... Afinal, és minha mamãe de criação... posso?...” rosnou suavemente, acercando-se de mim.
 
Emocionada por aquela surpresa abracei-o muito, muito e muito! Meu companheiro de todos os dias. Meu fiel protetor falava comigo!
 
- “Claro que me podes chamar de mamãe! Meus filhos, seus irmãos, não se aborrecerão, por isso! Meu neném...”
 
O traquinas desembaraçou-se do meu abraço e voltou para o meio do quintal, alegre como ninguém! Fiquei a admirar-lhe o pelo negro brilhante, brilhante. Aquela estrutura corporal, robusta e musculosa, encantava-me! Suas mandíbulas sadias com presas ameaçadoras contrastavam com o carinho que me devotava. Obediente, fiel e corajoso, o meu belo cão!
 
O chamado de Rosa retirou-me daquele enlevo. Rápida, fui ao seu encontro.
 
- “Poeta, que bommm!!! Estás feliz novamente, que maravilha! Se soubesses como tens o sorriso bonito, jamais deixarias de sorrir!”
 
- “Ah, Rosa! Estava com tantas saudades da minha própria alegria, eu também!”
 
Ensaiei uns passos de dança pelo jardim, com muito cuidado para não machucar a grama verdinha.
 
- “O sol mostra-se tão saudável, que aproveitarei para limpar uns quadros meus.”
 
Dito isso, entrei em casa. Na sala, retirei da parede um quadro grande de dois metros por um e meio. Ai, que difícil carregá-lo! Mas, batendo aqui e ali, consegui chegar até o quintal.
 
Rosa riu do meu esforço.
 
- “Que quadro estranho! Tem uma grade de ferro colada?”
 
Sorri, balançando a cabeça em assentimento à sua inquirição.
 
- “Deixa-me limpá-lo enquanto o sol não esquenta, caso contrário, a cera que o reveste derreterá. Então, contar-te-ei uma curiosa história.”
 
- “Também quero ouvi-la!” interrompeu-nos Poetrix.
 
Os botões de rosa puseram-se a rir do cãozinho ciumento.
 
Ao final, todo limpinho, coloquei o quadro ao abrigo do sol e arrastei uma espreguiçadeira confortável até perto da roseira. Gostaria de fitar o céu tão lindo, enquanto recordasse aquela fase distante da minha vida. A curiosidade inocente da minha flor preferida fizera-me relembrar um passado que também contribuía, de alguma forma, para justificar a tristeza dos últimos dias. Afinal, minha expressão artística enveredava por outras sendas, para além da poesia.
 
Rosa, antevendo o significado da minha revelação, anunciou que ficaria quietinha enquanto me ouvisse e pediu à Natureza e ao Poetrix que fizessem o mesmo.
 
Então, iniciei o monólogo.
 
- “Fiquei muito tempo sem pintar! Mais de 15 anos, acreditam? Ao final do ano passado, uma querida amiga provocou-me tanto e tanto, que, em razão disso, pintei quatro quadros de uma só vez! Durante uma semana, nada mais fiz, senão pintar. Deixei-lhe a casa toda florida!”
 
Sorri ao relembrar a felicidade estampada no rosto da minha amiga e do seu filhão.
 
- “Bem, a história que lhes desejo contar ocorreu há quase vinte anos, quando desfrutava um grande amor com o meu segundo marido.”
 
Espraiei o corpo, langorosa...
- “Certa vez, após duas semanas de trabalho continuado, a vigiar dia a dia, cada interferência do tempo sobre a matéria que trabalhara com tanta inquietação, tinha diante de mim o quadro mais estranho, que jamais poderia imaginar que pudesse nascer através das minhas mãos.”
 
Meu olhar perdia-se de mim, para brincar pelas nuvens do céu...
 
- “Ah, meus amiguinhos... encantei-me ao levantá-lo do chão! Aquela textura em relevo, ainda molhada, tinha uma aparência que fascinava e assustava ao mesmo tempo. Emoção incontida, gritei pelo meu marido sempre tão atento a todas as minhas criações pictóricas. Ao entrar no atelier, o seu olhar surpreso fez-me acreditar que valera a pena. Repetiu para si mesmo: “Que loucura! Fantástico!” Aproximou-se e lentamente pôs-se a analisar pedacinho por pedacinho a bizarra superfície... Após alguns minutos de contemplação, parabenizou-me orgulhoso. Abraçou-me, acendeu um cigarro e caminhou introspectivo para a sala. Sentou-se ao sofá e pude imaginar o que pensaria naquele momento. Afinal, acompanhara minha evolução como pintora. Quando nos conhecemos, quis conhecer os meus trabalhos. Recém separada do primeiro marido, recuei timidamente. Não abriria as portas do meu apartamento a um homem estranho, mesmo que fosse um colega de trabalho. Tal foi a insistência, que levei ao escritório um dos meus quadros, com o qual amealhara três prêmios em concursos de pintura. Nunca vira nada igual! Paixão à primeira vista! Perguntou-me o valor, pois desejava comprá-lo. Mas, eu não pretendia vendê-lo... Insistiu, mas não sucumbi às ofertas. Qual a razão? Não sei. Necessitava de dinheiro - e muito - pois o meu primeiro marido deixara-me com três filhos e ainda não ingressara em juízo com o pedido da pensão alimentícia para as crianças.
 
Ninguém despregava os olhos de mim, naquele momento. Continuei minha história.
 
- “Meses após a negativa de vender-lhe o quadro tão desejado, passamos a dividir o mesmo teto. Apaixonamo-nos avassaladoramente. Carlos dizia aos amigos que se casara comigo para ter o quadro que tanto gostava. Tornou-se o meu principal admirador. Apanhou quadro a quadro, e, do mais bonito ao mais simples, levou-os todos, para emoldurá-los. Engraçado, como não expressava o mesmo interesse pelos meus poemas... Nossa união terminou há mais de 10 anos, mas, “Ascese” enfeita a parede principal da sua residência, até hoje.
 
Exarei um suspiro profundo e as rosas cutucaram-se enxeridas. Percebi que apostaram, umas com as outras, que ainda amaria aquele homem. Senão, por que me lembraria dele com tanto carinho? Rosa não participou daquele rumor e Poetrix se preocupava mais em aproveitar aquele momento para se enroscar às minhas pernas.
 
- “Pois bem, voltando ao encantamento provocado pela obra recém criada, quedei-me a lamber a cria. Mas, faltava algo, que ainda não descobrira. Sentei-me em um banquinho incômodo. Não buscava conforto e sim provocação. Faltava algo. Ah, faltava sim! Mas, o quê? Permaneci por alguns minutos a observar. Em silêncio, o meu olhar provocava a tela... quase a lhe implorar respostas. Mas, a pintura silenciosa retribuía-me o olhar angustiado. Interação. Busca mútua pelo orgasmo criativo.”
 
As rosinhas avermelharam-se ainda mais e emitiram um gritinho excitado! Continuei o meu conto, alheia ao efeito das minhas palavras.
 
- “De repente, não mais do que de repente, levantei-me. Estilete afiado nas mãos, feri o quadro, com gosto!”
 
- “Ai! Ai! Ai!” - gritaram as rosinhas, em coro! Rosa lançou-lhes um olhar fulminante e as meninas silenciaram.
 
- “Rasguei a tela, como se rasgasse a pele do meu amor, com as unhas e os dentes, nos momentos da paixão! Outro golpe. Mais um. Um retângulo da tela dependurou-se, pesado de tanta matéria. Terminei o ataque, a saborear a retirada da parte rejeitada, como se lambesse o produto de uma ejaculação candente. Cortei-a e cuidadosa guardei-a em um canto. Não era lixo. Era algo, embora ainda não soubesse o quê.”
 
A grama orvalhou e as rosinhas estremeceram arrepiadas. Poetrix saiu de perto, aborrecido com aquele frenesi. Subiu na casinha da bomba d'água para olhar, do outro lado do muro, a cadelinha que acabara de ser mamãe de três cãezinhos.
 
- “Ao pressentir-me em êxtase, Carlos apareceu à porta e, horrorizado com o que viu, gritou inconformado: “O que fizeste?!!! Estás louca?!!!” Arrancou-me o estilete das mãos, perplexo com a destruição! Gritava: - “Destruíste tua obra prima! Por quê, depois de tudo pronto¿ Não posso acreditar! Não posso acreditar! Estás brincando de ser pintora!!!” Diante daquela reação, calei-me assustada. Não sabia o que responder.
 
Abaixei o tom da voz e continuei o meu relato.
 
- “Pela primeira vez, em relação à minha pintura, ouvi sua voz dura a espancar-me com palavras cruéis. Ao seu olhar, fui uma irresponsável, ao estragar um material caríssimo, que me comprara com tanto carinho. Ouvi calada as ofensas. E, foram tantas!
 
Algumas lágrimas ameaçaram rolar à simples lembrança daquele momento.
 
- “Muito aborrecido, o meu marido desligou a televisão e foi para a cama, ainda a vociferar contra mim. Não o acompanhei, como sempre fazia. Sim... porque somente depois que o percebia a dormir, levantava-me para pintar pela madrugada adentro. Mas, após aquela imprevista e pungente agressão verbal, optei por permanecer no atelier. Uma dor singular magoava o meu peito, sem que pudesse evitá-la. Adjetivos severos ecoavam nos meus ouvidos. Que brutalidade! Meu fiel admirador...”
 
Enxuguei o rosto, sorumbática.
 
- “Sentei-me naquele mesmo banquinho e deixei as lágrimas descerem livremente. Os meus olhos não se desgrudavam da imensa tela. Namoravam o que viam... e gostavam muito! Não sei dizer por quantas horas ali permaneci, somente a vigiar.”
 
Nostálgico, o meu pensamento voou até aquela madrugada distante em Copacabana...
 
- “Era quase dia, quando me levantei e fui até a geladeira. Nada de guloseimas, nada de água. Ansiava por outra coisa. Impetuosa, arranquei-lhe uma das grades de suporte aos alimentos e, tal qual uma ladra, que ataca na madrugada, voltei correndo para o atelier. Sem pensar muito, assentei o quadro no chão, de costas. Posicionei a grade no espaço vazio, inundando-a de cola, que se misturava às lágrimas que rolavam dos meus olhos. Depois, na falta de aparato melhor, coloquei três ou quatro latas de tinta e alguns livros de pintura pesados sobre aquela coisa toda, para que a grade se pudesse fixar por inteiro. Cobri tudo com outras telas. Somente então, fui para a cama. Rolei de um lado para o outro. Queria amor, muito amor... mas, naquela noite, como em tantas outras, adormeci com a solidão da minha arte.”
 
Ao compreender-me a dor, Rosa interferiu:
 
- “Não precisas continuar esse relato, se te faz sofrer...”
 
- “Não me quero calar. Por favor, ouçam-me! Eu preciso falar, Rosa. Não sei a razão, mas preciso!”
 
E continuei:
 
- “Quando Carlos se levantou para trabalhar, fingi que dormia. Medo da sua fúria, quando percebesse a falta da grade na geladeira. Nada ocorreu, entretanto. Mal ouvi o ranger da chave na fechadura da porta, levantei-me e corri para o atelier. Tudo molhado, ainda! Teria que esperar muito tempo para secar, em razão do peso da grade. E, agora, o que faria? Não tinha outra coisa a fazer, senão contar com a sorte.”
 
Poetrix voltou com as orelhinhas ainda mais caídas sobre o rosto, a testa (cães possuem testa?) enrugada.
 
- “Uma noite. Duas noites. Três noites se passaram, desde o incidente. E, nada! A cola não secava! Iniciava-se a quinta noite e, na sala, o marido assistia televisão. Entrei no atelier, ainda temerosa. Parecia-me que o processo de secagem evoluíra. Ergui o quadro, como se acordasse um amor que, por muito tempo, estivesse adormecido... Observei-o, sempre em silêncio... Ofegava... Mas... mas... ainda não era aquele o efeito desejado! Passei os olhos pelos quatro cantos do ambiente e um pedaço de espelho chamou-me a atenção. Apanhei-o e, com certa dificuldade, prendi-o por detrás da grade da geladeira. Oras, deveria ter feito o mesmo com a grade! Bastaria tê-la costurado à tela! Tanto tempo e tantos medos teriam sido evitados! Bem, de que adiantaria me desgastar, naquele momento, a imaginar o que poderia ter realizado?”
 
Balancei a cabeça de um lado para o outro, criticando-me pelo passado.
 
- “Mais uma vez, ergui o monumento. Encostei-o a uma das paredes. Um pouco de cola ligeiramente amolecida arranjara-se pelos cantos do recorte, com um certo charme... Admirei-a, agradecida.”
 
Poetrix e o jardim inteiro prestavam atenção a todos os detalhes do meu relato. Rosa, em especial. Engraçado... nunca poderia imaginar que fossem se interessar por ouvir a respeito do nascimento de um quadro.
 
- “Criei coragem e chamei o marido, que não falava comigo desde aquela noite cruel. Demorou para levantar-se do sofá, mas veio. Entrou no meu ambiente encantado, como o chamara carinhoso até então. Quando na posição correta o quadro, o rasgo ficava na altura do seu rosto. Pedi-lhe, com afeto, que se aproximasse para olhar a obra de frente.  Ao fazê-lo, viu-se ao espelho, preso atrás das grades. Eu, liberta, observava-o em silêncio. Uma lágrima rolou pela sua face.”
 
Calei-me. Rosa permaneceu em silêncio. Todos silenciaram. Tudo silenciou, até o meu passado.
 

MOTA, Sílvia. Freiheit I. 1994. Original: 1,50m x 2,00m. Acervo da pintora.
Exercício pictórico: busca por texturas diferentes inspirada, inicialmente, na radiografia do pé esquerdo da autora.
A foto não evidencia os detalhes, mas, decorridos tantos anos, a textura alcançada ainda se apresenta com a aparência úmida, que lhe oferece um aspecto estranho: a determinados olhares, pele de cobra; a outros, parede de prisão.
Processo criativo múltiplo, materializado sob a forma de técnica mista: choque entre tintas acrílica, tintas à óleo, betume e cola; gesso trabalhado ao efeito de espátulas; colagens de papel, correntes e moedas; banho de parafina derretida finalizado, aleatoriamente, por exposição ao sol. Detalhe: grade de ferro arrancada de geladeira, superposta a espelho.
Esta pintura foi inserida na categoria de expressionismo abstrato.

A obra integrou as seguintes exposições:
2000 Universidade Estácio de Sá. A prata da casa. Campus Tom Jobim. Rio de Janeiro.
1995 Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Exposição do Núcleo de Aprofundamento em Pintura de 1994. Rio de Janeiro. Título das obras expostas: Freiheit I, Freiheit II.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 21/03/2010
Alterado em 06/01/2020
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