O jardim e a poeta
Episódio nº 1: Tudo foi amor, na minha vida!
O dia amanheceu lindo e resolvi passear pelo meu jardim. Vesti somente um robe longo de seda negra, a combinar com a camisola. Sacudi a cabeleira escura e longa, permitindo-lhe aninhar-se naturalmente sobre os ombros. Desci as escadas com Poetrix, meu cão de guarda. Não me deixa o negro e belo meninão!
A um olhar rápido conferi a sala. Não abri as janelas. O objetivo era o jardim e, por conhecer-me tão bem, sabia que permaneceria aos devaneios a olhar a rua de terra quase sempre vazia. Além do que, aquela floresta que a margeia encanta meu olhar e a minha imaginação. Apressei o passo e abri a porta da cozinha. Num segundo, o calor natural do corpo atraiu o do sol, que me extasiou os sentidos!
Como se enxergasse algo, para bem além daquela realidade, franzi a testa, contraí os olhos verdes de esperança azulada e esfreguei-os levemente... Então, segurei a ponta da camisola e do robe, como a iniciar uma dança e adentrei o jardim. Que delícia de natureza! Longe de ser primavera, mas, por todos os lados, rosas e rosas e rosas vermelhas! Todas elas, vermelhas! Exigência ao perfeito jardineiro - grama sadia e rosas vermelhas. Pelo ano inteiro!
Ofereci água a tudo, gramas e flores. Poetrix saciou-se, também. Aliás, o danadinho ao festejar-me bateu forte as patas dianteiras no meu peito, e, num sem querer, desfiou ligeiramente a renda negra da longa lingerie que me vestia o corpo dourado de sol. Ah! Que pena!... Ajeitei, rapidamente, enrolando o estrago com a ponta dos dedos umedecidos na saliva quente. Acalmei-o com afagos e iniciei uma conversa com a natureza. Tanta exuberância!
Declamei o poema “Duas rosas” de Castro Alves e as flores emocionaram-se, a ponto da grama aveludada e carinhosa acolher cada orvalho espalhado pelo chão. Tão verdinha, pediu-me tímida, que declamasse um poema da minha autoria. As rosas festejaram a ideia! Um. Dois. Três. Quatro. Cinco... Dez! Quantos pedidos! E, eu, vaidosa como as pétalas das rosas, saciei-os a todos! Esvoacei por entre aquele verde todo, dramatizando cada palavra! Distribuí sorrisos maliciosos aos ventos! Provoquei as nuvens! As minhocas e as formigas pararam seu intenso trabalho, para ouvir-me. Seduzi até o ar, que entrava sôfrego pelas minhas narinas! Encantei a natureza inteira daquele pedaço de chão, que tremia excitado aos meus pés!
- Psiu! - chamou-me alguém, a cortar-me o frenesi. Olhei ao derredor e nada vi.
- Poeta! Aqui...
Olhei e vi uma rosa aveludada e linda, de cor forte e firme, bem mais escura do que as demais. Carregadinha de espinhos, a proteger-lhe. Talvez fosse a mais idosa, mas destacava-se no imenso jardim.
- Chamas-me, rosa afortunada de beleza?
- Sim. Queria um beijo...
- Claro! – respondi curvando-me para beijá-la, delicadamente. Afinal, as rosas são muito sensíveis!
- Sei a razão da tua poética!
- Sabes, mesmo?
- Sei. Foste sempre muito amada.
- Lá isso é uma grande verdade! Sorri e sofri, mas amei e fui amada, sempre!
- Posso enxergar na íris dos teus olhos. Tua vida está aí pintada...
Fechei os olhos, rapidamente, como a proteger algum segredo.
- Não faças assim! O amor é tão bonito e tão difícil de ser encontrado! Não te sintas envergonhada, nem mesmo pelos segredos mais profundos...
Meneei a cabeça, como numa afirmativa, ainda que encabulada.
E a sábia rosa continuou: - A Poesia acompanha-te desde o berço...
- Outra verdade... - interrompi a bela flor - nasci do amor de mamãe poeta e de papai músico. Amaram-se muito durante toda a vida, até que papai se foi... Mas, acredito que, por tão lindo, aquele amor persista entre as estrelas...
- Sim, também creio nisso. Como vês, tenho bem mais idade do que as outras rosas e mais histórias ouvi. Queres sabê-las?
Inquieta, sentei-me num banquinho para escutar melhor a rosa.
- No mundo das flores dizem muitas coisas. Quando o jardineiro me escolheu para enfeitar teu jardim eu era uma mudinha bem frágil e prometia ser muito bela, o que se confirmou mais tarde... modéstia à parte...
A rosa sorriu delicada e tímida pareceu-me ainda mais vermelha.
- Pois é... No caminho para minha nova casa escutei a conversa entre alguns sacos de terra, bem mais velhos do que eu. Animados em suas tertúlias, em determinado momento, disseram-me que seria plantada e cultivada na casa daquela poeta da qual falavam. Então, algumas aves enxeridas aproximaram-se e, a ciscar a terra, puseram-se a palrear sobre ti.
Acariciei meu cão e pedi-lhe sossego, para ouvir aquela conversa agradável. Afinal, transformara-me em história contada entre sacos de terra, aves e mudas de rosas! Uauuu!
- Continuando... um dos sacos abriu-se e a terra que ali estava jurou-nos, por todos os deuses, que coadjuvou com terras, luas e sóis nos sonhos do teu pai, antes do teu nascimento!
- Como assim?
- Segundo a terra negra, teu pai teve duas revelações dias antes do teu nascimento. Na primeira, sonhou que teu rosto era o miolo de uma linda flor. Percebeste? Sempre flor aos sonhos do teu pai, mesmo antes de nascer... Compreendes porque esse perfume todo, que embala tuas madrugadas, através dos teus poemas? Aqui do jardim, percebo tuas luzes acesas até o raiar do dia e, de quando em quando, ouço teu canto... Pois bem, na segunda revelação, ornava-te um vestido dourado. Caminhavas princesa altiva, no alto de uma montanha. Encantado pela visão que se colocava num quase uníssono ao infinito, teu pai cobiçava ver-te o rosto. Ansioso, aproximava-se atento a cada movimento elegante do teu pisar. Mas, o faiscar daquela desconhecida beleza ofuscava-lhe os sensíveis olhos azuis. Então, quase que num golpe de piedade, olhaste-o de frente e aquele fatal olhar demarcou um eterno amor. Quando cresceste, teu pai reconheceu em ti aquele rosto encantador do sonho. Fico a pensar junto aos botões que enfeitam minha roseira, que tua forma de seduzir nasceu ali, naquele momento, no qual encantaste teu pai. Até hoje és assim... Gostas de ser cobiçada... mas demoras a entregar-te aos desejos. Não obstante, quando te envolves, é para sempre, numa eternidade que só finda para o outro, jamais em ti!
Nossa! Como saberiam aqueles entes da natureza, a respeito das histórias que ouvira na minha infância e adolescência? E, que interpretação oferecia aquela simples rosa, aos meus instintos femíneos!
- Mas, como...
Antes que fizesse alguma pergunta a rosa retomou seu relato, obrigando-me a permanecer em silêncio e instigada com tudo aquilo.
- Um dos pombos relembrou outra passagem. Segundo sua pomba avó materna, no momento do teu nascimento uma revoada de pombos saiu pela janela. Ninguém percebeu quando entraram. Foi um barulho de asas - plá plá plá plá plá - e uma alegria indescritível apoderou-se da tua mamãe, que por mais que tentasse nunca conseguiu explicá-la a ninguém! Contou ainda, que ao nascerem teus filhos sentiste aquela mesma alegria da tua mãe e que jamais foste a mesma, pois imbatível em força e coragem!
Extasiei-me! Escutara aquele episódio contado pela minha mamãe, desde a mais tenra idade. Nunca quisera detectar a verdade ou loucura daquele encanto. Acreditara e pronto! Coisa tão linda não mereceria ser questionada. Mamãe contava tão embevecida! Quando meus filhos nasceram tive a certeza do que mamãe falara, porque uma alegria, uma felicidade indescritível fez doer meu peito, sem consegui-la explicar também! Virei deusa, da noite para o dia... Incrível! Melhor que prestasse mais atenção. Ajeitei a coluna um tanto quanto doída e agucei os ouvidos.
- Um colibri ingressou na conversa para dizer que teu primeiro choro encantou a todos, logo ao nascer, por tão afinado!
Sorri. Por que crescera tão desafinada, então?
- De tão alto, teu choro acordou a irmã pequenina, que entrou no quarto a perguntar se havia “crianças novas” por lá. Quando teus pais lhe responderam que era uma menininha, decepcionada respondeu que a cegonha errara.
A rosa calou-se, por um instante, como se ela mesma estivesse presente na madrugada do meu nascimento. Então, completou:
- Para tua irmãzinha linda, de cabelinhos louros encaracolados, tão diferentes da tua morenice, teu nascimento fora um grande erro. Nunca escondera a preferência por um irmãozinho, para não perder o lugar de princesinha no coração dos teus pais. Mais tarde, segundo o colibri, inteligentíssima, resolveu o problema transformando-te na sua bonequinha viva, mesmo depois de adulta...
Meus olhos marejaram-se de saudades. Emocionante. Minha querida e linda irmã, minha tão querida irmã, sempre protetora... Mas, como sabia aquela rosa, disso tudo? Ameacei abrir a boca para perguntar-lhe, sendo novamente interrompida.
- O mesmo colibri também expôs, que ao receberes visita de bebezinhos machos, estes permaneciam enlevados, como se estivessem a ouvir uma canção ao longe... As mães diziam que teu sorriso encantava-os, à mesma forma que encantam no mar o canto das sereias. Outras, afirmavam ser a cor indefinida dos teus olhos a causa do encantamento. Uma coisa ou outra, quando os filhos se apresentavam inquietos, levavam-nos para mirar teus olhos ou ouvir-te o riso.
O sorriso agora era meu, embevecida por ser o sujeito daquela conversa meio real e meio lenda. Não perguntaria nada! Queria somente ouvir as verdades e aqueles ditos um tanto quanto mitológicos a meu respeito.
- Um curió relatou tua infância e as brincadeiras de índios com teus irmãos, num lugar muito simples de montanhas verdejantes, das quais saía uma fumaça de fogo ao anoitecer, que lhes instigava a imaginação.
A esta altura eu só voava no tempo até alcançar um recanto naquela época distante, no qual mamãe, então professora, permaneceu por três meses depois de formada, para "escolher cadeira". Brincávamos de arco e flecha e corríamos por entre os arvoredos, naquele espaço infinito delimitado cuidadosamente pela nossa linda mamãe. Depois, sentávamos à luz dos lampiões para ouvir e sonhar com as histórias fantásticas criadas pela mente maravilhosa da irmã Zizi, que a todos os livros de histórias infantis devorava vorazmente!
- Um uirapuru cantou tristemente a morte do teu avô paterno e do teu irmãozinho caçula... Mais tarde, a do teu papai...
- É verdade... eles se foram... Meu irmãozinho, tão cedo!
- Quantos amores, também se foram... e a tudo poetizaste! Alegrias e tristezas! Poucos compreenderam a extensão da tua necessidade de amar intensamente, mas poetizaste cada emoção!
Permanecemos caladas por um segundo, eu e a natureza.
- Tanto amor e tanta poesia leva-me a crer que, sendo tua mamãe poeta, conversaste poeticamente com suas vísceras antes de nascer.
Nossa! Que coisa mais forte e bonita acabara de ouvir!
- Tudo foi amor na tua vida... cada lágrima, cada sorriso! Tudo! Tudo! Poucas pessoas amaram e foram amadas assim!
Calada, permaneci.
- Abra o coração! Não permaneças só. Não faças como eu que embelezo todos os olhares e perfumo todos os sentidos, mas somente daqueles que entram neste jardim! Não lastimo minha sina, mas tua vida é um bem maior do que a minha vida. Podes agir, interferir no mundo! Eu, não! Não te enraízes! Não precisas de espinhos para defender-te! Possuis o dom da palavra, o teu sim e o teu não! Escuta, deixa esse amor fluir! Não tenhas medo... É o que de mais lindo e mais completo sabes fazer! Continua a amar, agora nesse outono!
Misticamente, algumas gotas de chuva começaram a cair do firmamento. Lágrimas? Não sei. Em silêncio, lancei um olhar de despedida às rosas vermelhas, à grama, ao jardim, às realidades... quiçá, aos sonhos de amor... Chamei Poetrix. Entrei em casa. Abri as janelas. Admirei a paisagem.
Uma dorzinha suave do lado esquerdo do peito, bem lá no fundo. O robe negro de seda e rendas cheirou-me a luto...
Depressa, esfreguei os olhos... Acordada! E, viva!
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 21/03/2010
Alterado em 21/06/2016