Meu Diário
06/07/2016 01h10
12-11-1967 - Eu e "A Caridade e a Justiça", de Guerra Junqueiro

E a "faxina" pelos papeis acumulados, revela-me outras surpresas.

Esse diploma é do mesmo ano, três meses depois - 12 de novembro de 1967. E, continuamos no drama. Poema de difícil interpretação! Depois desse poema, somente declamei poemas da minha mãe Mariinha Mota.
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A CARIDADE E A JUSTIÇA
Guerra Junqueiro
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No topo do Calvário, erguia-se uma cruz,
E pregado sobre ela o corpo de Jesus.
Noite sinistra e má, nuvens esverdeadas
corriam pelo céu como grande manada de búfalos,
E a lua ensanguentada e fria,
Triste como um solução imenso de Maria
lançava sobre a paz das coisas naturais
a merencória luz, cheia de brancos ais.
Um silêncio pesado amortalhava o mundo
Unicamente ao longe o velho mar profundo
Decantava, chorando os salmos da agonia
E, Jesus, cheio de dor, quase a expirar, sorria.
Os abutres cruéis, pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo às vezes de repente,
uma nuvem toldava a face do luar,
um clarão de gangrena, estranho e singular,
lançava sobre a cruz, uns tons esverdeados
crocitavam ao longe, os corvos esfaimados
Mas passado um instante, a lua branca e pura,
Irrompia, outra vez , da grande névoa escura
]e, inundavam-se, assim, as chagas de Jesus
nas pulverizações balsâmicas da luz.
No momento em que havia grande escuridão,
Cristo viu alguém aproximar-se e então
olhou e viu surgir do horror das trevas mudas,
o covarde perfil sacrílego de Judas.
O traidor, contemplando o olhar do Nazareno
Tão cheio de desdém, tão sublime, tão sereno,
convulso de terror, fugiu.
Surgiu-lhe, neste instante,
frente a frente, um vulto de gigante,
que bradou: traidor é chegado o teu castigo,
o traidor teve medo e balbuciou, amigo:
Quem és tu, que queres tu de mim, por quem esperas
O remorso, um caçador de feras,
Eu ando há mais de seis mil anos,
a caçar pelo mundo, as almas dos tiranos
Do traidor, do vil, do celerado
e quando as prender, tenho-as encarcerado
na enormíssima jaula atroz a expiação
e quando entro na imensa confusão
de tigres, de leões, de abutres, de chacais,
de rugidos febris e de gritos bestiais
fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto
Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
E, quando enfim, alguns dos monstros quer lutar,
Azorrago-o com a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé como num cão mendigo
Judas, já sabes quem sou, andas comigo.
Como um preso que quer comprar um carcereiro,
Judas tira do manto a bolsa do dinheiro
Dizendo: aqui tens, deixa-me partir
O gigante fitou-o e começou a rir.
Houve um grande silêncio, o infame Iscariote,
Como um negro que vê a ponte de um chicote
Tremeu!
Finalmente, o vulto respondeu:
Judas, podes ficar, esse dinheiro é teu,
O ouro da traição, pertence ao traidor,
Como o riso à inocência e como o aroma à flor,
Este ouro será para ti o eterno pesadelo,
Guarda-o, guarda-o bem que quero derretê-lo
E, lançar-to, depois, cáustico, vivo, ardente,
Lançar-to gota a gota, inexoravelmente.
Em cima da consciência, a pútrida, a execrável
Com ele hei de fundir a algema inquebrantável
A grilheta que a tua esquálida memória, trará,
arrastará pelas galés da história
Durante a eternidade, ilimitada e calma
Esta bolsa que aí tens, será o cancro de tua alma,
Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,
como a lepra nojenta ao corpo do leproso
como o imã ao ferro e o verme à podridão,
não conseguirás jamais lançá-la da tua mão.
És traidor, hipócrita, assassino, perjuro
Tua alma lançada em cima de um monturo
É o que há de mais vil,
Desde o ventre do sapo, à barba do réptil.
Sai da existência, diz à sombra que te açoite,
Verme procura a paz, monstro procura a noite.
Que sol não veja mais um único momento,
O teu olhar oblíquo e o teu perfil nojento.
Esse crime, bandido, é um crime que profana
Todas as grandes leis da consciência humana,
todas as grandes leis da vida universal.
Esconde-te na morte como um chacal.
Adeus! Causas-me nojo e asco,
Deixe dentro de ti Judas,
O teu carrasco.
Adeus, já brilha o astro matutino
E eu, caçador feroz cumprindo o meu destino,
Continuarei a caçar os javalis nos matos
E dito isto, partiu a procurar Pilatos.
Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada,
Judas ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro, impávido e terrível,
Comum um homem que leva um fim imprescritível.
De repente estacou, uma ideia qualquer heroica e sobranceira,
Havia uma figueira
Projetando na estrada a larga sombra escura,
Judas desenrolando a corda da cintura,
Subi, atou-a a um ramo vigoroso,
Neste instante o seu olhar odioso,
Tinha um brilha adamantino,
Reto como um juiz e forte como um destino.
Neste instante ecoou através do negro céu profundo,
A voz celestial de Jesus moribundo
Que lhe disse: traidor, concedo-te o perdão,
Além de meu carrasco, és ainda meu irmão
Pregaste-me na Cruz, és o mesmo, fica em paz,
Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
Esses golpes cruéis, essas horríveis dores
As chagas para mim são outras tantas flores,
Não te cause espanto o meu atroz suplício,
Eu tenho como bem vês até prazer no sacrifício.
Judas contemplou ao longe, o cerro do Calvário
E erguendo-se viril, soberbo e extraordinário
Exclamou: não aceito a tua compaixão,
A justiça dos bons, consiste no perdão,
Um justo não perdoa, a justiça é implacável,
A minha ação é infame e miserável.
Vendi-te aos fariseus
Pois bem sendo eu um monstro e tu um Deus,
Vais ver como este monstro o pobre Cristo nu,
É mais forte do que Deus
E mais justo do que tu
À tua Justiça humanitária e doce,
Eu prefiro o dever terrível,
E enforcou-se!


Publicado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 06/07/2016 às 01h10
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